Ciência

A cientista que colocou o Piauí no mapa da arqueologia

Pesquisadora Niède Guidon revolucionou teses sobre a ocupação do continente e lutou pela proteção do semiárido brasileiro

Niède Guidon, arqueóloga e fundadora do Parque Nacional Serra da Capivara. Dedicou sua vida à preservação do patrimônio arqueológico e ambiental do semiárido brasileiro. (Foto: Elisabete Alves / Wikimedia Commons)

Por Anna Julia Vieira, Isabelle Layara Marques Pereira eMaria Eduarda Inácio

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A arqueóloga brasileira Niède Guidon faleceu no dia 4 de junho de 2025, aos 92 anos, na cidade de São Raimundo Nonato (PI), deixando como legado uma das mais importantes contribuições à arqueologia mundial. Dedicou a vida à pesquisa e preservação da Serra da Capivara, onde coordenou escavações que colocaram em xeque teorias tradicionais sobre o povoamento das Américas.

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Formada em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP), Niède se especializou em arqueologia pré-histórica pela Universidade de Paris, onde também obteve seu doutorado. Atuava como pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) quando decidiu, em 1973, investigar as pinturas rupestres no Piauí. A decisão contrariava o foco da pesquisa de sua mentora, Annette Laming-Emperaire, que privilegiava a região de Lagoa Santa (MG). No entanto, foi no semiárido nordestino que Niède encontrou seu destino científico.

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Achados que mudaram a história

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Durante décadas de escavações, Niède e sua equipe identificaram mais de 1.300 sítios arqueológicos na Serra da Capivara e na vizinha Serra das Confusões. Em muitos deles, havia arte rupestre sofisticada e vestígios de ocupação humana surpreendentemente antigos. Um dos exemplos mais emblemáticos vem do sítio da Pedra Furada, onde carvões encontrados a quase oito metros de profundidade foram datados, inicialmente, em 18 mil anos.

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Essas descobertas, validadas por datações feitas na França e no Brasil, contrariaram a chamada “hipótese Clóvis”, que sustentava que os primeiros humanos chegaram à América do Norte há cerca de 13 mil anos, via Estreito de Bering. Segundo Niède, os registros mais antigos da presença humana na região nordeste do Brasil podem ter até 100 mil anos. Ela defendia a hipótese de que o Homo sapiens teria migrado da África para a América do Sul por via marítima, quando o nível dos oceanos era mais baixo e a distância entre os continentes, menor.

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Pintura rupestre no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí. As imagens gravadas nas rochas representam cenas do cotidiano de grupos humanos pré-históricos e ajudam a reconstituir modos de vida de até dezenas de milhares de anos atrás. (Foto: Diego Rego Monteiro / Wikimedia Commons)

Ciência para além da arqueologia

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O trabalho de Niède não se limitou às escavações. Em 1986, fundou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), responsável pela administração do Parque Nacional Serra da Capivara. A instituição atua na pesquisa, preservação e educação ambiental. A arqueóloga também promoveu ações sociais e econômicas para a população da região, como o incentivo ao turismo sustentável e a construção de infraestrutura local.

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Além disso, preocupou-se com os impactos ecológicos na fauna e flora locais. Alertou para o desmatamento, a caça ilegal e a degradação ambiental causadas por políticas públicas mal conduzidas. Defendia, por exemplo, o cultivo de espécies nativas com valor comercial, como flores ornamentais e cactos, no lugar da agricultura convencional insustentável na caatinga.

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A biodiversidade da região, segundo ela, é subestimada: “A Caatinga, ao contrário do que se diz, tem uma biodiversidade muito grande”. Chegou a comentar que, por falta de verbas e vigilância, o número de tamanduás-bandeira no parque caiu de dezenas para apenas três. Também relatou que já foram catalogadas 60 onças na reserva e que, em alguns casos, macacos-pregos fabricam ferramentas confundidas com artefatos humanos por arqueólogos.

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Reconhecimento internacional e desafios persistentes

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O Parque Nacional da Serra da Capivara foi criado em 1979 e declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 1991. Mesmo com esse reconhecimento, Niède enfrentou sérias dificuldades financeiras: “Precisamos de apenas R$ 400 mil por mês para manter o parque com o número adequado de funcionários”, disse certa vez. Em seu auge, a equipe contava com 270 empregados; atualmente são pouco mais de 80.

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Ela também denunciava a lentidão de projetos fundamentais, como o aeroporto internacional prometido desde os anos 1990, essencial para viabilizar o turismo internacional na região. “O dinheiro chegou e derreteu todinho”, ironizou, referindo-se ao desvio de recursos.

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Entre os tesouros arqueológicos preservados no parque estão fósseis, urnas funerárias, ferramentas líticas, cerâmicas com até 9 mil anos e uma flauta de madeira com mais de 1.300 anos, a única do gênero encontrada na América do Sul. Segundo datações ainda não publicadas, uma das pinturas rupestres pode ter até 34 mil anos, possivelmente a mais antiga do mundo.

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Painel de arte rupestre no Parque Nacional Serra da Capivara (PI). As pinturas, com até 43 mil anos, estão entre os registros mais antigos da presença humana nas Américas. (Foto: Janine Moraes / Ministério da Cultura / Wikimedia Commons)

Um legado revolucionário

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Niède Guidon rompeu barreiras científicas, institucionais e geográficas. Como destacou o professor Álvaro Penteado Crosta, da Unicamp, “o complexo do parque é único no mundo e mostra como é possível partir de muito pouco para um projeto de sucesso mundial na área de preservação”. Sua determinação e independência permitiram que uma mulher brasileira, fora dos grandes centros de pesquisa internacionais, formulasse uma teoria revolucionária sobre a origem da humanidade nas Américas — e fosse ouvida.

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Seu legado transcende a arqueologia: é um chamado à ciência comprometida com o conhecimento, a justiça social e a preservação do patrimônio natural e cultural.

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Edição: Nicole Heinrich

Orientação: Artur Araujo


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