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Padre Júlio Lancellotti critica neoliberalismo

Segundo ele, esse sistema nunca terá políticas públicas para os pobres, porque “não se humaniza”

Por Aline Nascimento e Giovanna Laranjo

Às 07h30min da manhã, de segunda a sexta, na Praça Barão do Tietê, zona leste da cidade de São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, 76 anos, empurra um carrinho de supermercado carregado com caixas de papelão fechadas, enquanto é seguido por um grupo de voluntários em direção à Rua Siqueira Cardoso, onde está o Núcleo de Convivência São Martinho Lima – Bompar (Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto). Uma rotina que segue toda a semana, de segunda à sexta-feira.

Padre Júlio Lancellotti conversa com sem-teto em frente à Praça Barão Tietê (Foto: Carla Cardoso

Com 861 mil seguidores em suas redes sociais, padre Júlio é uma figura influente nos cenários religioso, político e social do Brasil. Estando há 36 anos na Paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro do Belenzinho, o pároco é líder da Pastoral do Povo de Rua, que dá assistência e apoio às populações em situação de marginalização, vulnerabilidade e rua.

Sem-tetos abrigam-se em barracas de camping e lonas em frente ao Núcleo de Convivência São Martinho Lima (Foto: Carla Cardoso)

No alto da praça, um homem grita por ajuda enquanto apoia-se em um banco de concreto. Logo, um sem-teto anda em direção ao padre Júlio e explica que o homem tinha sido liberado da UPA e que tinha dificuldade para andar. O grupo entrega cuecas ainda embaladas ao sem-teto, que é tratado pelo nome por todos.

Ao entrar na rua do Núcleo de Convivência São Martinho Lima, percebe-se muitas pessoas em situação de rua — incluindo famílias inteiras —, algumas dentro de barracas camping, outras deitadas em cima de papelão, mas a grande maioria de pé, frente àquela unidade do Bompar, a espera do café da manhã. Segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), entre o início de 2019 e o início de 2021, quase 1,2 milhão de pessoas ingressaram na extrema pobreza no Brasil. E em um levantamento feito no final de 2020, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, é dado que cerca de 19 milhões de brasileiros estão passando fome.

Rapidamente, o grupo enfileira cerca de cinco mesas brancas e nelas organizam pães, camisetas estampadas, cuecas, calcinhas e absorventes, que foram todos cuidadosamente desembalados. Muito ativo em suas redes sociais, padre Júlio grava um vídeo para mostrar aos seus seguidores e apoiadores o que será entregue aos que chegam ao centro comunitário naquela manhã.

Fila para o café da manhã do Núcleo de Convivência São Martinho Lima (Foto: Carla Cardoso)

Uma fila forma-se em frente às mesas, atravessando todo o salão. A rua não tem rosto. Mães com crianças de colo, mulheres trans e travestis, senhores idosos, homens enrolados em cobertores. Depressa, todos recebem alimento e peças de roupa. Alguns pediam dois pães. Por dia, em média, são atendidas de 500 a 700 pessoas.

Uma mulher transexual, conhecida por todos, aproximou-se das mesas, e foi recebida com festa, abraçada pelo padre Júlio e por uma voluntária, que a chamou de irmã. Quando uma mãe com uma criança de colo passa pela fila, o padre Júlio logo grita: “Quer uma touquinha?”. Ela dá passos para trás e escolhe uma touca amarela de tricô para sua criança e agradece.

“Que outro padre do mundo vocês veem fazendo isso?”, indaga André Alexandre, 29 anos, voluntário da “Pastoral do Povo da Rua” há quatro anos, e estando junto ao Padre todos os dias, encontra-se desempregado. Contudo André afirma que tem esperança de ser empregado, pois o Padre Júlio havia lhe conseguido uma entrevista de emprego no distrito do Campo Limpo, zona sul da cidade, naqueles próximos dias. “Não chamo ele de Padre, chamo de pai”, conta Alexandre.

Também se aproxima do padre Júlio um homem relatando que não teria sido contado pelo Censo Pop Rua, que está sendo realizado desde o final de outubro. A Prefeitura de São Paulo antecipou a entrega da atualização do Censo da População de Rua, que antes poderia ser entregue até 2024, mas agora deve sair até maio de 2022. Em suas redes sociais, o padre Júlio denuncia que os sem-tetos não estão sendo contados pelos pesquisadores. “Coloque uma máscara e vamos gravar um vídeo contando isso”, disse o padre para o homem. Em suas redes sociais, o sacerdote publicou depoimentos de sem-tetos que também não foram contados pelo censo. “Eles definem que a população de rua é quem dorme na calçada, ou quem está em abrigos”, disse.

Padre Júlio Lancellotti entrega pão a um cadeirante (Foto: Carla Cardoso)

Geandre Candido, 43 anos, trabalha na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e atua como voluntário da Pastoral do Povo da Rua desde 2017. Segundo ele, os pesquisadores do censo não fazem uma contagem cuidadosa do número de moradores de rua, tanto que, em cada barraca de camping é considerado automaticamente que há apenas um sem-teto, mesmo se houver duas ou três pessoas nela. “Nós temos que brigar para que o censo seja feito corretamente”, ressalva Candido.

Toalha e sabonete, distribuídos pela Prefeitura de São Paulo, para a população em situação de rua (Foto: Aline Nascimento)

Outro problema apontado pelo padre são as toalhas de banho e sabonetes distribuídos pela prefeitura: um quadrado pequeno e fino de TNT branco e um sabonete retangular com sete centímetros de diâmetro. “Quer uma toalha de banho dessa? As assistentes sociais dizem que são ótimas”, exclama, o padre. No último 26 de novembro, ele publicou em seu Instagram que conseguiram arrecadar 500 toalhas pretas de algodão, para serem distribuídas pela Bompar, substituindo as brancas de TNT.

O padre Júlio acredita que a essência do capitalismo é desumana, que a miséria é resultado do sistema e, por isso, alega que “as pessoas em situação de rua e vulnerabilidade não serão melhores atendidas pelo governo tão cedo”. O sacerdote afirma que o poder corrompe àqueles que o adquirem e reitera que, independente do posicionamento de quem estiver governando, medidas eficazes que rompam a desigualdade não serão tomadas. “Dentro do sistema em que vivemos, nunca haverá políticas públicas para os pobres. O neoliberalismo não se humaniza”, explica o padre.

A inspiração

Ao entrar a pequena igreja do bairro do Belenzinho, nota-se a imagem de São Miguel Arcanjo, no centro do altar, e uma imagem de Nossa Senhora das Graças à direita. Mas, à esquerda, escondida atrás de uma coluna, chama a atenção uma imagem da Santa Irmã Dulce, religiosa baiana canonizada em 2019. A homenagem à santa brasileira repete-se em um banner pendurado próximo ao portão e, no próprio avental do padre Júlio Lancellotti. “Santa Dulce é uma inspiração muito forte”, explica o religioso.

Voluntária entrega touca amarela para mãe sem-teto (Foto: Carla Cardoso)

A Irmã Dulce ganhou notoriedade pela sua máxima dedicação na assistência aos necessitados e doentes, na cidade de Salvador (BA). “Ela é um sinal forte de compromisso com os mais pobres”, afirma. Em 1980, Irmã Dulce foi gratificada e abençoada pelo Papa João Paulo II, que durante uma missa campal realizada em Salvador, chamou-a ao altar, lhe presenteou com um terço e disse: “continue, Irmã Dulce, continue”. Como a religiosa, o padre também teve sua entrega aos mais pobres reconhecida pelo Papa.

Em outubro de 2020, o patriarca da Igreja Católica contou aos fiéis sobre a ligação que fez ao líder da Pastoral do Povo na Rua. O Papa disse que “esta é a nossa Mãe Igreja, este é o mensageiro de Deus”, referindo ao padre Júlio Lancellotti. Em nota, padre Júlio declarou ter enviado fotos das pessoas em situação de rua, de São Paulo, e que o Papa Francisco viu essas fotos. Durante a conversa, por telefone, o patriarca pediu que, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, “não desanime e continue com os mais pobres”.

Serviços

Para ajudar o trabalho da Pastoral do Povo da Rua, podem ser feitas doações através de pix, para a chave 63.089.825/0097-96.

Orientação:  Profª Rosemary Bars

Edição: Letícia Almeida


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