Ciência

Pesquisador cria IA para identificar abusos sexuais

Sistema desenvolvido na Unicamp consegue reconhecer as imagens automaticamente e conquista o Prêmio Vladimir Herzog

Por Aline Nascimento e João Chaves

Um sistema digital desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com base na inteligência artificial, consegue identificar automaticamente imagens de abuso sexual infantil. Criado pelo mestre em computação e agora doutorando pela Universidade de Tsukuba, no Japão, Pedro Henrique Vaz Valois, a pesquisa recebeu o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos,da Unicamp e do Instituto Vladimir Herzog, que aconteceu em 22 de maio deste ano.

Pedro Henrique Vaz Valois, premiado pelo Prêmio Vladimir Herzog, faz doutorado em universidade no Japão. (Reprodução/Acervo Pessoal)

Valois desenvolveu a dissertação “Aprendizado auto-supervisionado para reconhecimento de cenas em imagens de abuso sexual infantil”, com o objetivo de criar técnica que conseguisse classificar imagens como as ‘que contém conteúdo de abuso’ e as que não contém de maneira automática, sem que isso demandasse que uma autoridade policial tenha que de fato averiguar cada uma. “Os policiais coletam muito material de abuso sexual infantil e não tem capacidade emocional e humana mesmo de lidar com a quantidade que é encontrada”, explicou o autor, que concedeu entrevista para o Digitais por teleconferência no Japão.

Geralmente, a atividade pericial de busca por imagens de abuso sexual infantil é realizada nas mídias ou equipamentos apreendidos — como discos rígidos, pendrives, notebooks e celulares. Posteriormente, eles são processados e os arquivos ilegais já conhecidos são imediatamente identificados, mas os arquivos ‘não conhecidos’ precisam ser analisados.

Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), nos quatro primeiros meses de 2023, foram registradas 397 mil violações de direitos humanos de crianças. E no ambiente virtual, houve registros de exploração sexual, com 316 denúncias e 319 violações; estupro, com 375 denúncias e 378 violações; abuso sexual físico, com 73 denúncias e 74 violações; e violência sexual psíquica, com 480 denúncias e 631 violações.

A Lei nº 13.718/2018 estabelece que é crime possuir, adquirir ou armazenar, por qualquer meio, material pornográfico que envolva crianças ou adolescentes, e por isso, Valois e sua orientadora, a professora Sandra Ávila, tiveram o desafio de fazer com que o programa funcionasse sem nunca terem visto uma imagem de abuso de verdade. Para isso, conversaram com policiais e compreenderam que existiam padrões perceptíveis nessas cenas. Nesse caso, como a pesquisa não se destina especificamente à detecção de material de abuso sexual infantil, mas sim à identificação dos ambientes onde isso ocorre, Valois precisava que os policiais lhe explicassem em quais locais as imagens de abuso apareciam com mais frequência.

O fato de Valois ter saído da frente dos monitores e ido atrás dos peritos policiais trouxe-lhe o pioneirismo nesse tipo de análise de dados sensíveis na Unicamp. Isso porque, em trabalhos de inteligência artificial relacionados ao abuso sexual infantil, não é comum que pesquisadores façam contato com os policiais, e geralmente a pesquisa fica limitada ao campo teórico e não vai ao prático.

Pedro Henrique Vaz Valois e Profª Dra. Sandra Ávila durante a defesa da dissertação premiada. (Reprodução/Acervo Pessoal)
 

A professora Sandra Ávila explicou que essa é uma área da inteligência artificial chamada deep learning, o aprendizado de máquina ou aprendizado profundo. Nela, as redes neurais aprendem a partir de exemplos — por definição, as redes neurais processam informações de maneira semelhante aos neurônios do cérebro, permitindo que as máquinas aprendam e tomem decisões com base em dados. “Quando a gente vê o exemplo do que é uma maçã, você mostra [ao computador] que é uma maçã, mostra exemplos também do que é uma laranja e a partir daí você aprende a diferenciar. É isso o que ensinamos para a máquina: exemplos do que são cenas, o que são cenas internas, o que é um quarto de criança, o que é uma sala, um estúdio”, afirmou.

João Macedo, perito criminal federal, que trabalha no Setor Técnico Científico da Polícia Federal na área de informática, participou da consultoria da pesquisa de Valois. Ele explicou que o método que Valois desenvolveu ainda precisa ser integrado às ferramentas já existentes usadas pelos peritos, e terá de passar por um longo processo de refinamento com imagens reais, já que não foi possível utilizá-las no trabalho original. Mas a classificação de cenas ou do ambiente na análise do material será um ganho para sua atividade.

João Macedo. (Reprodução/Acervo Pessoal)

“Isso abrirá novas possibilidades hoje não existentes, como por exemplo, a pesquisa de imagens ilegais registradas em determinado ambiente. Isso porque, dada a natureza do material, a busca por imagens e vídeos relacionadas a abuso sexual infantil é sempre custosa, inclusive do ponto de vista de saúde mental dos peritos. Sendo assim, as ferramentas que possibilitam reduzir a exposição a este conteúdo são sempre bem vindas e ajudam a reduzir esses efeitos”, esclarece Macedo.

Valois destacou que, sob uma visão social, seu trabalho representa a universidade trabalhando em prol da sociedade de maneira direta, além de dar visibilidade e reconhecer uma causa muito importante: o abuso e a exploração sexual infantil. “É muito importante dar esse reconhecimento a esse problema, que é muito forte no Brasil. Tem países que não tem nem a definição disso, mas o Brasil pelo menos tem essa definição. Isso já é um caminho andado, pois temos o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então é um problema que fala por si só, e vê-lo sendo reconhecido é extremamente importante, sim”, declarou.

Desde que entrou na computação, Sandra Ávila procura enxergar como a tecnologia pode ajudar as pessoas, e procura desenvolver esse anseio através de suas pesquisas. Além do tema do abuso sexual infantil, Ávila orienta pesquisas na área da saúde e na área da agricultura (como produzir mais alimento gastando menos recursos, pensando também em identificar pragas). Os alunos dela já receberam vários prêmios, mas Valois é o primeiro a receber o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog, e o único a ser premiado na área de direitos humanos.

O pesquisador não pôde comparecer à cerimônia de premiação, pois já tinha iniciado seu doutorado no Japão. Mesmo do outro lado do oceano, o pesquisador ficou feliz em ter seu trabalho reconhecido. “No Brasil, você tem problemas de investimento e falta de recursos. Você não sabe se está indo para o caminho certo, e quando você ganha um prêmio, é o reconhecimento, não só para mim, mas para toda a equipe, para o laboratório, e mesmo para quem trabalhou indiretamente”, declarou.

O que é o Prêmio Vladimir Herzog?

O Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos da Unicamp e do Instituto Vladimir Herzog teve sua terceira edição este ano, e tem como foco premiar trabalhos produzidos em universidades paulistas ao longo do ano anterior à cerimônia, que retratam problemáticas atuais como pobreza, desigualdades de gênero e de raça, acessibilidade, migrações, violência e sustentabilidade, através de um processo de avaliação que passa por 43 membros de instituições de ensino de todas as regiões do Brasil, até que enfim chega nos acadêmicos escolhidos para receberem a premiação. Neste ano, o Prêmio Herzog foi entregue no dia 22 de maio, concedido a 15 pesquisadores que atuaram em três níveis diferentes da formação acadêmica: graduação, mestrado e doutorado. A premiação também é segmentada em cinco categorias, entre elas a de Ciências Exatas, Engenharia e Tecnologia, a qual Valois foi premiado por sua dissertação em mestrado sobre o reconhecimento de cenas em imagens de abuso sexual infantil. Nas outras categorias estão englobadas áreas como Ciências Biológicas e da Saúde; Ciências Humanas, Sociais e Econômicas; Artes, Comunicação e Linguagem; e Educação.

Orientação: Prof. Artur Araújo 

Edição: Suelen Biason


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