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Excesso de brinquedos pode contribuir para atraso da fala

Segundo especialistas, pais devem optar por brincadeiras interativas e limitar uso de telas                                                                                                                 

Por: Fernanda Machado

“A fonoaudióloga do meu filho aconselhou a reduzir a quantidade de brinquedos, porque o fluxo grande de informações não o estimulava. Se me perguntassem há alguns meses qual era o brinquedo preferido dele, eu não saberia responder”. A declaração é de Adenise Leão, mãe de uma criança de 3 anos, ainda sem diagnóstico fechado, mas cujas habilidades em se expressar por meio da fala estão aquém do esperado para sua faixa etária.

Adenise Leão, mãe do Pedro: “não sabia qual era o brinquedo preferido do meu filho” (Crédito: Arquivo pessoal)

De acordo com dados da Associação Norte Americana de Fala, Linguagem e Audição (ASHA – em inglês), o atraso de fala não associado a patologias tem uma incidência estimada na ordem de 10 a 20% entre as crianças de 18 meses a 3 anos de idade. Os meninos são até três vezes mais suscetíveis a apresentarem algum distúrbio em relação às meninas, e crianças de famílias em que há histórico de pessoas que tiveram atraso, têm o dobro de probabilidade de não desenvolverem a fala na faixa etária esperada.

Segundo a pedagoga Fernanda de Oliveira Soares Taxa Amaro, existem alguns marcos que demonstram o chamado desenvolvimento normal da fala para cada etapa do crescimento. “A partir dos doze meses, a criança já balbucia algumas palavras e faz indicações simples. Então, nessa idade já é possível identificar e investigar alguns problemas, como os auditivos. Todavia, é importante os pais saberem que existe um desvio padrão de até seis meses”, pontuou.

Para Fernanda, que é docente da PUC-Campinas, quanto antes um possível atraso for diagnosticado e serem iniciados os tratamentos terapêuticos adequados, maiores as chances de a criança ter um desenvolvimento dentro do esperado, a ponto de o atraso não impactar na adolescência e vida adulta. “Se houver um suporte desde cedo, ela tende a ser mais assertiva, baseado no conceito de psicologia conhecido como auto-eficácia, uma metodologia que busca reduzir nossas inseguranças. É o caso do que acontece na matemática, por exemplo, quando a gente acredita que não é capaz de aprender e leva isso para o resto da vida”, ressaltou.

 

A importante função da organização mental da fala: um processo que precisa ser concreto

Para a doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fonoaudióloga, Heloísa de Oliveira Macedo, disponibilizar um número grande de opções pode atrapalhar o desenvolvimento da fala, porque a criança sequer consegue explorar o potencial pedagógico de cada brinquedo.

A orientadora educacional Millena Bonomi: “crianças com atraso na fala estão mais inseridas nas classes altas” (Crédito: Arquivo pessoal)

“Ela pode se desorganizar”, explicou ao defender atividades mais lúdicas, como a construção dos próprios brinquedos com tubos de cola e caixas de papelão. “É um processo parecido com a linguagem, esses estímulos são ferramentas que contribuem para o desenvolvimento de habilidades”, disse.

Segundo a orientadora educacional na Educação Infantil de um colégio particular de Campinas, Millena Cristina Bonomi, as crianças que apresentam atraso na fala estão mais inseridas nas classes altas da sociedade. “Nem sempre um poder aquisitivo é de maior ajuda. Às vezes os pais acham que estão fazendo o bem dando uma porção enorme de brinquedos”. Ela explicou que, quando começou a levar para as salas de aula garrafas PET, pedaços de tecidos e panelas velhas, as professoras olharam desconfiadas. “Ninguém acreditava que as crianças fossem deixar de lado os carrinhos de controle remoto e as bonecas tops, mas é importante cedermos esse espaço para eles poderem imaginar, inventar e criar”, enfatizou.

A fonoaudióloga Heloísa Macedo: “não existe mediação nas telas, o que a criança aprende é uma imitação” (Crédito: Arquivo pessoal)

Tão importante quanto limitar o leque de brinquedos disponíveis é evitar o excesso de exposição das crianças a dispositivos eletrônicos como celulares e TV. De acordo com Heloísa, que é especialista em linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa), os índices de atraso de fala vêm aumentando bastante devido à falta de comunicação interativa. “Não é nada patológico, o problema é que, nas telas, não existe a mediação de um adulto na construção do conhecimento. O que a criança aprende é basicamente uma imitação”, analisou ao constatar que, embora em alguns casos a criança apresente comportamentos típicos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), ela não é diagnosticada com tais condições.

 

Aula remota e muita tela não ajudam

“As aulas remotas e toda essa imersão no mundo digital, prejudicaram e estagnaram o desenvolvimento do meu filho. É desumano ficar das 7h às 12h na frente do computador. Eu assisto às aulas com ele, mas não obrigo mais, fazemos o que dá”, disse Thaís Zinger, mãe do Lucas, de 7 anos.

Thaís Zynger, mãe do Lucas: “imersão no mundo digital estagnou o desenvolvimento do meu filho” (Crédito: Arquivo pessoal)

Aluno de um colégio particular de Vinhedo, Lucas foi encaminhado a um fonoaudiólogo já aos dois anos de idade, tão logo sua pediatra observou uma dificuldade para desenvolver a fala, fato que permanece até os dias atuais. Apesar de consultar diversos especialistas, incluindo neuropediatras, não foi possível obter um diagnóstico conclusivo de quaisquer patologias. Hoje, Lucas conta com uma equipe multidisciplinar de fonoaudióloga, psicóloga, terapeutas, incluindo psicomotricista aquática, psicopedagoga, psiquiatra e, durante a pandemia, uma professora auxiliar que o acompanha nas aulas virtuais, de maneira a direcioná-lo nas atividades.

Um consenso ao qual toda essa rede de apoio chegou é que Lucas é muito afetivo e que, apesar de não falar, se comunica e interage muito bem com adultos e outras crianças, apresentando poucas características de estereótipos autistas. “Ele cativa muito bem os adultos, os funcionários da escola. Além disso, possui uma excelente compreensão do inglês”, disse Thaís ao comentar que “os amiguinhos acharam o máximo ele ter alguém para se comunicar por ele nas aulas remotas, porque ele acena, mostra a lição para a professora, então acaba sendo divertido para eles”.

Segundo a pedagoga Millena Bonomi, graduada pela PUC-Campinas, as aulas remotas prejudicaram de alguma forma a absorção dos conteúdos. “Ainda não conseguimos mensurar, mas na minha avaliação há uma perda. Com o professor do outro lado da tela, vejo que as crianças não conseguem manter o nível de concentração, elas se dispersam e tendem a se desinteressar mais rápido pelos assuntos”. Para ela, que também é especialista em Arteterapia pela Universidade São Marcos, apesar dos impactos negativos da tecnologia, “não fosse ela, não teríamos nos aproximado e tido a possibilidade de desenvolver diversas funções dentro das nossas próprias casas”.

 

A falta de socialização durante o isolamento

“Desde o início da pandemia, o Gael só tem tido contato comigo, com a mãe dele e com os avós, então por mais que a gente o estimule a pedir as coisas falando, ele sabe que não precisa se esforçar tanto, pois vamos acabar cedendo pelo cansaço. Ele entrou numa zona de conforto e acredito que isso se deve ao fato dele não ter outras crianças como referencial. Na escola, ele poderia ver como os colegas na idade dele já conseguem falar e isso o incentivaria”, contou o publicitário Maurício Pinheiro da Silva, pai do Gael, de 2 anos.

Uma outra consequência do isolamento social – segundo Pinheiro da Silva – é que a falta de interação com outras crianças desestimulou o interesse de Gael por brincadeiras mais dinâmicas. “Ele não gosta de brincar de gangorra ou no balanço, por exemplo, ele prefere atividades individuais, como os bloquinhos de formas. Quando ele encontra os primos, de 4 e 5 anos, na casa da avó, percebemos que ele fica até um pouco incomodado por estar interagindo com muita gente ao mesmo tempo.”

Maurício Pinheiro, pai do Gael: “pandemia nos exigiu uma didática dentro de casa e foi desesperador” (Crédito: Arquivo pessoal)

Pinheiro da Silva acredita ainda que, o fato de os pais poderem estar mais tempo em contato com o filho, deve ser colocado na balança e analisado os impactos positivos e negativos. “Se não fosse a pandemia, eu não teria esses momentos com o Gael, mas será que o fato de os pais estarem tão presentes na vida dos filhos é uma coisa boa? Será que o problema não está no convívio excessivo só com os pais?”, indagou. Uma pergunta que permeia, inclusive, as discussões sobre o homeschooling.

Para Pinheiro da Silva, que é pai de primeira viagem, a superproteção com o filho também pode ser um problema. “A pandemia nos exigiu uma didática dentro de casa e foi desesperador, porque a gente sempre acha que tem alguma coisa errada. O pai quer que o filho com dois anos já defenda uma tese de doutorado”, completou.

Ele também observa o cenário atual da pandemia como um desafio ao modelo de ensino remoto frente à maneira clássica, com professor e alunos em sala de aula. “É um questionamento que temos feito na universidade. Estamos vivendo um experimento em que caberia até uma análise do processo educacional. A escola tem esse papel, conta com profissionais que estudaram e se capacitaram para exercer suas funções. Ao contrário de nós, não existe curso para ser pai o tempo todo”, concluiu.

 

O contexto da pandemia mudou rotinas e só piora o atraso de fala

Impactado pela falta de socialização em decorrência da pandemia, Pedro, que chegou a aprender algumas palavras e articular a fala, apresentou uma estagnação em seu desenvolvimento oral, além de alterações comportamentais durante o período de isolamento social. Com as escolas fechadas e ambos os pais trabalhando por home office, Adenise Leão, a mãe, explicou que não encontravam tempo para conversar com o filho. “Foi tudo muito confuso, ele tinha toda uma rotina na escola e nós no trabalho. Não estávamos acostumados a nos dedicar tanto para a higiene e alimentação dele. No começo eu me sentia um robô, até esquecemos as interações.”

 

Respeitar as individualidades

Um diferencial no desenvolvimento infantil é o acompanhamento e cuidado com as peculiaridades de cada criança, independente de terem ou não algum atraso. Segundo Millena Bonomi, “não tem como estabelecer uma regra, temos somente alguns parâmetros do que é esperado em cada faixa etária, mas cada indivíduo aprende no seu tempo, jeito e ritmo. Então o respeito à individualidade é muito importante”, disse ao citar que existem crianças mais ou menos visuais, auditivas, comunicativas e caladas. A pedagoga, que atua na área infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental há 10 anos, apontou que o modelo online acentuou a diferença entre os alunos mais ou menos falantes. “Se não ficarmos atentos, só um aluno fala nas aulas”.

A pedagoga Fernanda Taxa: “a escola é o primeiro grupo que nos insere no mundo social” (Crédito: Arquivo pessoal)

Para Fernanda Taxa, que é também doutora em Educação pela Unicamp, “a escola é o primeiro grupo que nos insere num laboratório para o mundo social”. Neste sentido, a pedagoga avalia que é importante tratar a criança com algum atraso numa perspectiva inclusiva e humanitária e esclarecer, junto à própria criança e aos colegas de classe, que essa dificuldade existe. “Não é a igualdade que nos une, mas sim as diferenças. É preciso acabar com a pedagogia da dó, de tratar como coitadinho”, reiterou.

Ainda no que se refere às individualidades no desenvolvimento de cada criança, as escolas devem estar atentas às práticas de bullying. De acordo com Fernanda, o ambiente escolar deste início de século XXI permite uma discussão a respeito deste tema. “Quem não é diferente?”, questionou ao enfatizar ser fundamental conversar com a sala, não permitir as vaias, trazer um fonoaudiólogo para esclarecer o motivo pelo qual alguma criança fala “a-ai” e não “papai”, ou seja, reeducar e fazê-los entender essas diferenças.

Para ela, o que não pode acontecer em hipótese alguma é a exclusão, deixar de interagir com a criança. “São estratégias que as escolas e os professores devem definir juntos, porque também não posso chamar o aluno lá na frente para falar com toda a sala, primeiro é necessário incentivá-lo a conversar em grupos pequenos, até que ele se sinta confortável”, finalizou.

 

Orientação: Profa. Cyntia Andretta

Edição: Leonardo Fernandes

               


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