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Entidade promove cursos profissionalizantes e sobrevive de doações; hoje tem seis moradores que autoestima
Por Carla Cristine e Jaqueline Guerra
Em Campinas, no bairro Bosque, existe uma casa que se diferencia das famílias comuns. A antiga residência, com dois quartos, um escritório, cozinha, sala e uma pequena varanda abriga transexuais e travestis em situação de rua. Este é o local que seis pessoas chamam de lar. A Casa sem Preconceitos – Reduzindo Danos e Promovendo a Cidadania é uma instituição sem fins lucrativos e tem o objetivo de oferecer oportunidades para integrantes da comunidade LBGTQI+ em situação de rua, para que possam vivenciar a experiência de construir uma casa coletiva, reconstruindo seus sonhos.
A idealizadora dessa entidade é a agente social Suzy Santos, mulher trans, que conhece de perto todas as dificuldades enfrentadas por esta população. Campineira, Suzy é reconhecida nacionalmente por seu ativismo há mais de 15 anos. Ela integra a equipe do Consultório na Rua, do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, serviço itinerante que oferece assistência à população em situação de rua, com foco nos usuários de álcool e drogas. “Com esse trabalho fui me deparando com a população trans de rua. Começaram a me pedir um lugar, pois a gente tenta o acolhimento delas nos abrigos, mas tem dificuldade. Eu me sentia angustiada, porque ia para casa enquanto tinha que deixar aquelas pessoas na rua”, lembra.
Pronta em três meses, a casa foi inaugurada no dia Nacional da Visibilidade de Transexuais e Travestis, celebrado em 29 de janeiro. O espaço possui seis vagas e, atualmente, vivem quatro mulheres trans, um homem trans e uma mulher cis lésbica. “Toda hora alguém me liga pedindo vaga, falando de alguém, mas já não tenho mais vagas”, explica Suzy.
Esta é a terceira casa de acolhimento aberta e coordenada por Suzy Santos. A última fechou ano passado por falta de recursos. A nova casa foi aberta graças a parcerias. O aluguel de R$ 1 mil mensal foi pago até maio por um casal homoafetivo e a danceteria campineira Caos vai entre junho e dezembro. “Tudo o que temos vem de doação e parceria, foram três meses para conseguir sofá, beliches, televisão, geladeira, tudo. Quando eu penso em desistir, sempre tem uma luz”, conta.
Amor de mãe – Em três anos, desde o início do projeto, a Casa Sem Preconceitos acolheu cerca de 20 pessoas e cria laços entre os seus moradores e a criadora. Robinho Prado, homem trans, morador da Casa há seis meses, é como se fosse o filho mais velho de Suzy. Ele estava em situação de rua desde os nove anos. Depois de conhecer o trabalho do Consultório na Rua, conseguiu uma vaga na entidade. Durante o período que permaneceu na rua, Prado teve que lidar com muitas dificuldades, desde agressões à fome. “Sofri muito preconceito e era obrigado a dar dinheiro para os outros, senão eu apanhava”, conta. Agora, enquanto está na Casa, ele conseguiu refazer seus documentos, receber auxílio do governo e comprar itens pessoais, como tênis e celular.
Robinho Prado agora sonha em ser veterinário e ter uma casa própria para ter um espaço para o seu cachorro, seu fiel companheiro. “Eu só tenho a agradecer à Suzy, porque se não fosse ela eu não estaria aqui e nem teria conquistado minhas coisas. Até conta no banco, que eu nunca tive, agora eu tenho”, celebra.
Suzy Santos conta que saiu de casa por um tempo, ficou em situação de rua e se prostituiu. Sua situação mudou quando o Grupo Identidade, movimento LGBTQI+ de Campinas, promoveu o projeto Prostituição na Pista para dez transexuais, com cursos, palestras e debates. “Após entrar no projeto, percebi que não tínhamos só a esquina como vivência”, exalta. Assim Suzy iniciou sua militância e voltou para as ruas como agente de prevenção.
Sua história se cruza com a de tantos outros transexuais, que muitas vezes, sem alternativa, são obrigados a se prostituírem e viverem nas ruas. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% dos transexuais e travestis do Brasil se prostitui. A Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedeTrans) estima que 82% das mulheres transexuais abandonaram o ensino médio por conta dessa falta de apoio das pessoas próximas. A falta de oportunidade no mercado de trabalho se dá pela baixa escolaridade somada ao preconceito, violências sofridas e violação dos direitos.
A moradora da Casa Núbya da Silva Pereira, mulher trans, conta que desde pequena tinha certeza sobre a sua identidade. A família não a aceitou e ela foi para a rua. Assim, a prostituição tornou-se parte de sua vida como a única forma de trabalho. Porém, fez curso de corte e costura, conheceu a Casa Sem Preconceitos e, em pouco tempo, entrou para a família. Núbya tem uma visão realista sobre o que as mulheres trans vivenciam na rua.
Entrevista Núbya:
Apesar de sua vivência, a rua não tirou a sua alegria e a inspiração. “No futuro, espero conquistar meu nome social e fazer uma faculdade de serviço social. Quero ajudar outras garotas que estão passando pela mesma situação que eu já vivi”, relata Núbya. De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Em 2019, foram 124 mortes, parte delas era de mulheres trans e travestis que se prostituíam.
O número representa um recuo de 24% em relação a 2018, quando foram registrados 163 crimes. Entretanto, o estudo mostra um crescimento de 66,7% no número de mortes, em comparação a 2018, no Estado de São Paulo. A pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp, Juliana Farias, explica que é preciso compreender os marcadores sociais da diferença, como gênero, sexualidade, raça e classe, que devem ser considerados no momento de formular políticas públicas.
Entrevista Juliana Farias:
Políticas Públicas – Em Campinas há o Centro de Referência LGBT (CR LGBT), da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos. Criado em 2003, é o primeiro serviço público governamental do país voltado às questões de violação de direitos e cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. De acordo com Suzy Santos, o CR LGBT peca no atendimento em diversos fatores.
Entrevista Suzy:
A coordenadora do CR LGBT, Valdirene Santos, explica que o Centro presta outros tipos de auxílios, como o atendimento psicológico, e que está dinamizando o tempo de serviço para atender mais usuários. Porém, sobre o acolhimento residencial, Valdirene diz que há uma lacuna sobre essas demandas. “Não faz parte da nossa governabilidade, por isso temos esta parceria com a Casa Sem Preconceitos”, esclarece.
A pós-doutoranda do Pagu-Unicamp, Juliana Farias, diz que o CR LGBT é uma conquista para o município, mas que ele não consegue fazer o acolhimento necessário e, muito menos, interferir no quadro de violência. “Não existe um órgão sozinho que seja suficiente, mesmo que ele atue com 100% de sua capacidade. Precisamos entender as políticas públicas de uma forma mais integrada, que sejam pensadas de uma forma interseccional e que diferentes instituições e órgãos governamentais possam atuar em conjunto”, explica.
Entrevista Juliana Farias:
Tentando diminuir essas diferenças, a Casa Sem Preconceitos, além de oferecer um espaço de trocas e acolhimento, resgata a autoestima dos moradores e assegura a cidadania e a inclusão social da população LGBTQI+. Para atingir seus objetivos, o espaço oferece de forma gratuita, através de parcerias, serviço social, serviço de saúde, acompanhamento psicológico e variados cursos profissionalizantes, como, por exemplo, corte e costura, para que cada morador tenha perspectiva de atuar no mercado de trabalho. “Temos que pensar que não vamos apenas tirar eles das ruas, precisamos oferecer um teto e reconstruir a cidadania. Nós temos parcerias com psicólogos, parceria com o CAPS para pessoas com dependência e alguns parceiros como professores”, explica Suzy.
A partir dos cursos disponibilizados pela entidade, Suzy conseguiu uma parceria com uma cooperativa de design de roupas para fazer oficinas com os acolhidos e ensinar uma possível profissão. Além disso, em conjunto com o curso de Arquitetura da PUC-Campinas, os alunos irão montar um ateliê na garagem da residência. A cooperativa que seria montada em março foi adiada devido a quarentena pelo coronavírus.
Serviços – A Casa Sem Preconceitos tem uma página no Facebook (https://www.facebook.com/CasaSemPreconceitos/). Os interessados também podem ligar pelo telefone (19) 99162-9472 e enviar e-mail para casasempreconceitos@gmail.com. O endereço da entidade é Rua Uruguaiana, n° 226, Bosque.
Orientação: professora Rose Bars
Edição: Guilherme Maldaner
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