Ciência

A ciência no ‘laboratório vivo’ da habitação social

Pesquisa da Unicamp usa escuta ativa em moradias populares para cocriar soluções com moradores no modelo de Living Labs
Por Taís Regina

Loteamento Quilombo, em Campinas, onde a pesquisadora Marcela Bridi desenvolveu um experimento de requalificação urbana. Foto: Marcelle Engler Bridi


No loteamento Quilombo, em Campinas, uma experiência conduzida por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) buscou responder a uma pergunta simples, mas negligenciada por políticas habitacionais tradicionais: o que os moradores realmente querem para suas casas?

Entre 2020 e 2023, a equipe coordenada pela arquiteta e professora Marcelle Engler Bridi aplicou no território uma proposta inspirada em modelos europeus de requalificação urbana participativa. Com base no conceito de Living Labs (ou “laboratórios vivos”), a pesquisa apostou na cocriação entre universidade e comunidade, propondo que as soluções urbanas fossem construídas a partir do diálogo entre técnicos e moradores.

“Nosso desafio era incluir o morador no processo decisório, escutar seus sonhos e necessidades para que isso orientasse o projeto técnico desde o início”, explica Bridi. A ideia é simples, mas rompe com a lógica tradicional da habitação social, em que soluções prontas são impostas de cima para baixo.

Escuta ativa: onde tudo começa

O primeiro contato da equipe com o Quilombo se deu por meio da Companhia de Habitação Popular de Campinas (Cohab), que apresentou a comunidade como possível campo de estudo. Ao chegarem ao local, os pesquisadores perceberam que as expectativas da população iam muito além de reformas estruturais.

“A maioria das casas populares é entregue de forma inadequada para o modo de vida das famílias. As pessoas não se sentem plenamente atendidas em suas necessidades cotidianas”, diz a arquiteta. O incômodo não se limitava ao interior das residências. “Eles estavam insatisfeitos com o entorno, com o condomínio que contempla apenas duas ruas para 103 casas.”


Para captar essas percepções, a equipe realizou visitas presenciais, oficinas e conversas abertas. A escuta ativa, segundo Bridi, foi a base metodológica da proposta. “Ouvimos o que as pessoas sentem, o que sonham, o que precisam. Isso muda o rumo de qualquer projeto técnico. A escuta não é um apêndice, ela é o coração do processo.”

A construção dessa confiança, no entanto, foi gradual. “As pessoas estavam cansadas de promessas. Houve muita desconfiança no início”, relata a professora. A adesão começou a acontecer quando uma moradora aceitou conversar com os pesquisadores e, depois, incentivou os vizinhos a participar. “Fomos de casa em casa, explicando o projeto. Distribuímos panfletos com os horários das reuniões e mostramos que estávamos ali para ouvir.”

Limitações de contexto: pandemia e ausência institucional


A pesquisa teve início durante a pandemia de Covid-19, o que impôs barreiras adicionais ao contato presencial. “Achávamos que todos tinham acesso à internet, mas vimos que não era bem assim. As mazelas sociais interferem em todos os sentidos na vida de uma pessoa menos abastada”, reflete Bridi. A desigualdade digital comprometeu parte das atividades remotas e revelou outra camada de exclusão.

Outro obstáculo importante foi a ausência de apoio público. Apesar de tentativas de articulação com o poder público local, os pesquisadores não encontraram abertura para incorporar o projeto em políticas institucionais. “Como universidade, tentamos criar soluções viáveis, mas muitas delas não saem do papel por negligência de políticas públicas”, lamenta a pesquisadora.

Mesmo assim, a equipe buscou implementar soluções de baixo custo e impacto direto na vida cotidiana, como áreas pavimentadas e hortas comunitárias. “Era uma proposta que combinava conhecimento acadêmico e saber local. Tínhamos pessoas na universidade que podiam ensinar, e moradores que queriam aprender.”

Quando o processo participativo também encontra seus limites

Nem todos, no entanto, se sentiram plenamente contemplados. Uma moradora, que preferiu não se identificar, expressou frustração com os rumos do projeto: “Não, minha casa não precisou mudar nada quanto ao espaço. Aqui acabaram com tudo recentemente. Um vereador veio aqui e colocou um porquinho para as crianças lá em cima. Ouviram a minha, o que convinha a eles. Nunca respeitaram a minha opinião. Por isso abri mão de tudo. Não mudou nada aqui, continua do mesmo jeito. Por isso cansei, não mexo com mais nada aqui.”


Situações como essa revelam as dificuldades de consolidar processos de participação real em contextos marcados por exclusão e desgaste institucional. “Tivemos que lidar com muitas expectativas. E também com a nossa limitação. Não estávamos ali como salvadores da pátria. Como universidade, não tínhamos como resolver todos os problemas daquela comunidade”, pondera Bridi.


Segundo a arquiteta, o modelo de Living Labs exige abertura institucional e financiamento público para alcançar seu potencial pleno. “O conhecimento técnico não é superior ao saber da vida cotidiana. Eles têm o mesmo valor. O problema é que a escuta verdadeira ainda é um ato político raro.”


O que é um Living Lab?


O conceito de Living Lab tem origem europeia e define um ambiente colaborativo emque usuários finais, técnicos, gestores e pesquisadores se reúnem para desenvolver soluções com base em experiências reais. Diferentemente de projetos convencionais, o Living Lab não parte de um plano fechado, mas de uma construção conjunta e dinâmica. O artigo científico publicado pelos pesquisadores da Unicamp na revista Habitat International, em 2024, reforça esse ponto: “A coprodução do valor depende do envolvimento contínuo dos moradores e da sua capacidade de transformar o espaço em função de suas próprias necessidades”.


Segundo a pesquisa, a aplicação dos Living Labs na habitação social tem potencial para promover o empoderamento dos moradores, fortalecer redes comunitárias e gerar soluções mais alinhadas à realidade local. A proposta vai além da reforma física das casas: ela busca transformar a relação entre população, território e poder público.

O que ficou do projeto?

Ao final do processo, o legado mais importante, segundo Bridi, foi o aprendizado coletivo. “Mesmo com todas as dificuldades, conseguimos mostrar que outra forma de fazer política habitacional é possível. Escutar, envolver, cocriar. São ações simples, mas que exigem tempo, humildade e compromisso ético.”

Apesar da ausência de apoio oficial, o projeto deixou sementes. Alguns moradores continuam mantendo hortas comunitárias, outros ainda buscam formas de reivindicar melhorias inspiradas no processo vivido. “Quando a comunidade participa, a transformação pode até ser pequena, mas o sentido dela é muito maior”, conclui Bridi.

Entenda melhor o estudo


Qual foi a inovação abordada?
Pesquisadores da Unicamp aplicaram o conceito de Living Labs para reformular processos de requalificação habitacional com base na escuta e participação dos moradores.


Quem conduziu a pesquisa?
Coordenada pela arquiteta Marcelle Engler Bridi, professora da Unicamp, a pesquisa foi realizada por uma equipe multidisciplinar entre 2020 e 2023.

Onde foi publicada?
Na revista científica Habitat International, reconhecida internacionalmente e revisada por pares.


Qual o impacto para a sociedade?
Fortalece o protagonismo dos moradores, promove soluções mais eficazes e aponta caminhos para políticas públicas mais participativas.


O que diferencia essa proposta de outras?

Valoriza o saber cotidiano dos moradores como base para decisões técnicas, em contraste com intervenções top-down.

Quais foram os limites da pesquisa?
A pandemia dificultou a interação presencial e a falta de apoio institucional restringiu o alcance das soluções propostas.

Há controvérsias sobre o tema?
O conceito é amplamente aceito na literatura científica, mas enfrenta barreiras práticas e resistência por parte do poder público.

Edição: Nicole Heinrich

Orientação: Artur Araujo


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