Ciência

Dossiê desvenda a dura realidade da vida de entregadores 

Pesquisa da Unicamp mostra que categoria sofre problemas de saúde e de falta de direitos 

Por Aline Nascimento 

Um estudo realizado pela Unicamp mostrou que a carga de trabalho e o estilo de vida dos motoristas de entrega por aplicativo (os motoboys), tem implicações diretas na saúde e vai contra diretrizes da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os dados foram publicados no Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado, em abril de 2024. 

O conceito de uberização do trabalho descreve o processo de precarização do trabalho de entrega e fornecimento de serviços por aplicativos. O antropólogo Cauê Nunes, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), explica que nesta forma de emprego, não há um patrão específico, e o aplicativo faz uma intermediação entre o prestador de serviço e a empresa que precisa do serviço.  

O antropólogo, professor da PUC Campinas, Cauê Nunes, explica a falta de regulamentação da pesquisa (Foto: Acervo Pessoal)

Como eles [os prestadores de serviço] não têm um patrão específico, existe todo um problema de regulamentação em torno disso. Por exemplo, em relação a quantidade de horas trabalhadas, não existe regulamentação para isso. Ou seja, eles trabalham numa quantidade muito grande, e é uma remuneração flutuante, ou seja, não é sempre a mesma”, afirmou Nunes. 

A pesquisa, conduzida pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da universidade, envolveu 200 profissionais de entrega que circulavam pela cidade de Campinas (SP), e evidencia os impactos do trabalho “sob demanda” — quando o profissional fica disponível para ser acionado conforme a necessidade da empresa. 

Em uma entrevista concedida ao Digitais, Silvia Maria Santiago, médica professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FMC-Unicamp), e Diretora Executiva do Departamento de Direitos Humanos da Unicamp, que participou ativamente da apuração das informações contidas no documento, conta como eles identificaram a necessidade de levantar dados sobre a saúde da categoria, e comenta os resultados obtidos .

Em 2021, durante o auge da pandemia de Covid-19, o Ministério Público do Trabalho (MPT) encaminhou à Unicamp uma demanda para realizar uma ação de saúde voltada aos trabalhadores de entrega. “Todos estávamos fazendo isolamento social. E esses trabalhadores eram aqueles que permitiam esse afastamento, já que eles levavam os produtos, como medicamentos e compras de supermercado, na nossa casa. Isso permitia que as pessoas ficassem em casa, mas ao mesmo tempo, esse trânsito deles pela cidade poderia colocá-los em maior risco para covid”, explica a professora. 

A professora Silvia Maria Santiago, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, participou ativamente da apuração das informações para pesquisa (Foto: Antonio Scarpinetti)

Para atender a essa demanda, os profissionais de saúde organizaram uma força-tarefa no Jardim Guanabara, bairro situado na zona central e norte de Campinas. Eles montaram um ponto de descanso para os motofretistas, onde eram realizados testes de covid-19 (com exames de sangue), aplicado um questionário sobre as condições de trabalho, e fornecidas orientações sobre direção defensiva e primeiros socorros. Ao todo, foram 220 entregadores atendidos durante a campanha. 

“A função principal [da campanha] era fazer testagem para covid, mas a gente percebeu que esses trabalhadores, apesar de serem jovens e fortes, tinham muita dificuldade de oferecer a gotinha de sangue para fazer o teste. A gente até mudou a técnica e o equipamento [para recolher o material para a testagem], mas isso mostrou que eles tinham um sangue, talvez mais viscoso, com maior dificuldade da gente ter acesso”, conta a professora. 

Dois anos depois, em 2023, após identificar deficiências na qualidade de vida dos entregadores, foi realizada uma nova averiguação e levantamento de informações sobre a categoria no município. Neste novo estudo, foi organizado um questionário com questões sociais da categoria (como remuneração e horas trabalhadas), além de perguntas sobre o estilo de vida (horas dormidas, alimentação, consumo de água). 

A pesquisa constatou que o estilo de vida dos entregadores acarreta problemas de saúde decorrentes de má alimentação, falta de acesso à água, poucas horas de sono, jornadas de trabalho extensas e altos níveis de estresse diário. 

Veja as principais constatações da pesquisa em relação à efeitos na saúde dos motoboys: 

  1. Desidratação: profissionais de entrega consomem menos de 1,5 litro de água durante o horário de trabalho, com muitos não chegando a beber nem 1 litro por dia, o que contribui para problemas de saúde, incluindo pedras nos rins. 
  2. Problemas respiratórios: motoboys relataram o aparecimento e o agravamento de doenças como bronquite, devido à exposição constante à poluição. 
  3. Hipertensão: mesmo após períodos de descanso organizados pela Unicamp, onde a pressão arterial deveria estabilizar, muitos motoboys apresentavam níveis preocupantemente altos.


O que mostra a pesquisa? 

Perfil dos motoboys. Crédito: Aline Nascimento

Entre os 200 entrevistados, 90% eram homens e quase 60% eram negros. Embora, em média, fossem mais jovens, os entregadores que dependiam dos aplicativos apresentaram problemas de saúde mais preocupantes. Esses trabalhadores exibiram a mesma proporção de medidas de pressão arterial alteradas que o grupo geral, que tinha uma média de idade maior. Além disso, consumiam menos líquidos ao longo do dia e enfrentavam uma situação econômica pior. 

Veja alguns dados colhidos pelo questionário do estudo, de 2023: 

  • A maioria dos trabalhadores declarou morar em Campinas (detalhes no gráfico). Muitos circulam entre cidades, transitam pelas estradas da região e, ocasionalmente, vão até a capital ou outros municípios. Grande parte afirmaram percorrer mais de 100 km por dia. 
  • Contrariando o imaginado pelos pesquisadores, a maioria dos motofretistas pesquisados — 56,1% de 189 respondentes — tem mais de 30 anos, com 25,4% acima de 40 anos. No entanto, os jovens também têm uma participação significativa, com 43,9% tendo até 29 anos. 
  • Entre os 193 respondentes, 40% trabalham sete dias por semana e 37% trabalham seis dias, e apenas 22% com dois dias livres de entregas. No entanto, esses dias livres não necessariamente representam descanso, pois muitos podem estar envolvidos em outros tipos de trabalho. 
  • A maioria dos trabalhadores dorme no máximo sete horas por dia (69,3% dos 199 respondentes). Além disso, 41,2% dormem até seis horas, e quase um quarto (23,1%) dorme no máximo cinco horas por noite

Além de não serem predominantemente jovens, a maioria dos trabalhadores tem vários anos de experiência como motoboys. Dos 200 respondentes, 20% trabalham há até dois anos na profissão, 42,5% entre dois e cinco anos, e 38% há mais de cinco anos. Destaca-se que quase um quarto dos entrevistados (23%) trabalha há mais de dez anos como motoboy.  

No estudo, não foi estabelecida uma correlação direta entre o tempo de trabalho e o surgimento de doenças, mas Silvia destaca que esse é um fator determinante para o aparecimento de condições médicas. Em outras palavras, quanto mais tempo o profissional estiver exposto a uma rotina exaustiva e a condições insalubres, maior a probabilidade de desenvolver problemas de saúde, ou agravar uma comorbidade preexistente. 

81% dos trabalhadores entrevistados declararam morar em Campinas (SP). Crédito: Aline Nascimento

Implicações na saúde: desidratação, doenças respiratórias e hipertensão 

Com o incidente envolvendo a gota de sangue, os profissionais que realizaram a primeira observação dos entregadores durante a pandemia perceberam a necessidade de identificar fatores do estilo de vida que contribuíssem para o surgimento de problemas de saúde, além de determinar quais problemas de saúde já estavam presentes nesses trabalhadores. 

No levantamento realizado em 2023, 66,5% dos entrevistados declararam consumir até 1,5 litro de água durante o horário de trabalho, enquanto 38% não chegam a beber 1 litro por dia. Os principais motivos alegados para o baixo consumo foram:  

  1. a dificuldade de encontrar água fresca disponível; 
  2. a necessidade de comprar água (alguns levam água de casa, mas ela logo ficava quente); 
  3. a falta de banheiros disponíveis 
  4. correria imposta pelo trabalho. 

“Nem todos os estabelecimentos forneciam [água], mas também eles não gostavam de tomar muito líquido, porque aí eles precisam ir ao banheiro urinar. E eles não tem um local de descanso fixo para se hidratarem e irem ao banheiro. Geralmente, ficam embaixo de uma árvore, conversando, esperando uma solicitação do aplicativo [os uberizados]. Então, essa constatação fez muito sentido para nós”, relata a professora pesquisadora. 

A ingestão insuficiente de água pode acarretar diversos problemas de saúde, principalmente renais, como pedras nos rins, como relataram seis trabalhadores. 

Os problemas respiratórios foram apontados por alguns motoristas. No levantamento, 14 relataram sofrer de condições como asma, bronquite, rinite ou sinusite, que podem estar associadas ao trabalho exposto ao sol, chuva, vento, frio e a poluição local, como também problemas pré-existentes. 

Silvia observa que as queixas eram recorrentes, algo previsto pela equipe, embora ela esperasse uma incidência ainda maior. “É muito frequente. Mas, eu achei que fosse ser mais frequente do que a gente achou, exatamente por essa exposição deles ao tempo”. 

A surpresa da pesquisa foi na alteração na medida de pressão arterial. De acordo com o levantamento publicado, entre os 198 motoristas avaliados, 44% apresentavam uma alteração na pressão arterial igual ou superior a 140 e/ou 90 mm Hg. 

Quando os motoristas de aplicativos chegavam ao ponto de descanso organizado pela Unicamp, eles repousavam de 15 a 30 minutos, tomavam água e respondiam a um questionário. Após esse período de descanso, que supostamente garantiria a estabilização da pressão, os profissionais de saúde realizavam a medição, que ainda se apresentava alta. 

“Essas pessoas, que são em geral muito jovens, tinham o dobro de medida de pressão arterial alterada do que a gente veria na população em geral”, explica Silvia.   

A professora conta que a maioria dos casos de hipertensão identificados são idiopáticos, ou seja, surgiram espontaneamente, ou tem a causa ainda desconhecida. Contudo, há indicativos para o aparecimento da condição médica na população em geral, e que aparece nos trabalhadores de entrega: 

  1. O estresse do dia a dia;
  2. má alimentação;
  3. falta de atividade física;
  4. privação de sono. 

Em relação a má alimentação, 50,5% dos 200 respondentes relataram que faziam três refeições por dia (veja mais dados sobre a alimentação no gráfico). 

22% dos trabalhadores entrevistados declaram pular o almoço. Crédito: Aline Nascimento

Silvia explica que foi percebido que os horários do almoço e do jantar são os períodos que os profissionais mais recebem chamados dos aplicativos, porque é quando os clientes mais fazem pedidos. E com a falta de pausas pré determinadas, e todo o modo de trabalho sob demanda, os motoboys acabam não tendo a rotina de alimentação prejudicada. 

“Não se hidratam bem, não se alimentam bem, dormem poucas horas por dia, tem uma atividade estressante no trânsito em cima de uma motocicleta, trabalham muitas horas ao dia e muitos dias por semana. Quer dizer, não há dia de descanso. [Esse modo de vida traz] condições ideais para o aparecimento da hipertensão arterial” 

Violações 

Segundo a pesquisa, os entregadores têm a saúde prejudicada por conta da falta de rotina (Foto: Kit Júnior)

O antropólogo Cauê Nunes explica que no modo de trabalho uberizado, existe um discurso de que os trabalhadores são autônomos e de que eles têm independência e autonomia para escolher para quem vão trabalhar, e para definir sua carga, horários e folgas. “Só isso é na teoria. Na prática, como eles ganham muito mal, eles têm que trabalhar muitas horas por dia e não tem horas de descanso. Se ele não pegar uma corrida para descansar, ele deixa de ganhar.”, explica. 

Essa realidade está diretamente relacionada ao aumento da carga de trabalho e à extensão das horas laborais mencionadas na pesquisa da Unicamp. Além de reduzir direitos e garantias dos trabalhadores, essa intensificação do trabalho contribui significativamente para o agravamento das condições de saúde dos motoristas. 

O dossiê reconheceu violações dos direitos humanos associadas ao modo, carga e condições de trabalho dos trabalhadores de entrega por aplicativos. A  Declaração Universal dos Direitos Humanos é composta por 30 artigos que delineiam as condições para uma vida digna, e especificamente o artigo 23º garante que: 

  1. todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; 
  2. todo ser humano, sem distinção, têm o direito a igual remuneração por igual trabalho; 
  3. todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social; 
  4. todo ser humano tem o direito de organizar sindicatos e neles ingressar para a proteção de seus interesses. 

        No decorrer da coleta de dados e conversa com motoristas, Silvia percebeu que o trabalho dos entregadores não lhes confere dignidade e seguridade social, e nenhuma garantia — principalmente quando há a necessidade de afastamento, em que os ganhos (e possivelmente toda a fonte de renda) do trabalhador cessam por inteiro.. “Quando você vê a declaração do artigo 23 e compara com a vida desses trabalhadores, é perceptível que ele tem sido violado”, explica. 

        Orientação: Prof. Artur Araújo

        Edição: Mariana Neves


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        Digitais é um produto laboratorial da Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas, com publicações desenvolvidas pelos alunos nas disciplinas práticas e nos projetos experimentais para a conclusão do curso. Alunos monitores/editores de agosto a setembro de 2023: Bianca Campos Bernardes / Daniel Ribeiro dos Santos / Gabriela Fernandes Cardoso Lamas / Gabriela Moda Battaglini / Giovana Sottero / Isabela Ribeiro de Meletti / Marina de Andrade Favaro / Melyssa Kell Sousa Barbosa / Murilo Araujo Sacardi / Théo Miranda de Lima Professores responsáveis: Carlos Gilberto Roldão, Carlos A. Zanotti e Rosemary Bars.