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Cidade cedeu espaço para os cinemas de shopping, seguindo a onda neoliberal
Por: Diogo Mosna e Larissa Idem
Desde o século passado, o cinema no município de Campinas representa um aspecto significativo para a agenda cultural da cidade. Para conservar e agrupar o acervo cinematográfico da cidade, em 1878 foi construído o Museu de Imagem e Som (MIS) de Campinas, que se transformou é um resquício da época dos cinemas de rua, mantendo viva a memória do cinema campineiro.
As histórias são feitas para serem lembradas, e, para o MIS, essa é uma máxima relevante. Para quem frequentou os cinemas de rua em Campinas entre os anos 1950 e 2000, também há boas memórias dessa época. É o caso de Maria José Ramalho, técnica em enfermagem, e de José Carlos Ramalho, guarda municipal, que são casados e frequentavam os cinemas de rua campineiros entre as décadas de 1980 e 1990.
Eles se lembram dos momentos em que iam ao cinema para namorar e encontrar os amigos. Para eles, os filmes “Ghost” e “Uma linda Mulher” marcaram o relacionamento e são uma lembrança que ultrapassou várias décadas. Hoje, eles se reúnem com as três filhas para contar as experiências e relembrar os momentos vividos naquele tempo, sempre com um ar nostálgico de um período em que ir ao cinema era “uma coisa de jovem”.
De acordo com Danilo Nunes, responsável pelo acervo fotográfico MIS, o que temos hoje em Campinas é fruto da resistência de cinéfilos, como a criação da sala Glauber Rocha do MIS. Diferente da prática tradicional de cinema que você vem, paga o ingresso e vai embora, o que existe no MIS são cineclubes que usam a sala para projetar filmes, o que Danilo considera um ato de ensino, pesquisa, estudo e formação. Os cineclubes são divididos por temas diversos: política, LGBTQIA+, literatura, animes, entre muitos outros.
Danilo Nunes, responsável pelo acervo fotográfico do Museu de Imagem e Som de Campinas (MIS) relata que existem vários desdobramentos para a compreensão do cinema em Campinas. “Um deles é sobre a produção cinematográfica, que trouxe a realização de obras como ‘Fernão Dias – O governador das esmeraldas’, dirigido por Alfredo Roberto Alves, de 1957”, explica.
A recepção dos filmes exibidos é o que define o cinema, o qual é indústria, comércio, arte e, também, cineclubes. “É o ato de exibir e conversar sobre o filme, onde ocorre a coisa mais importante: o diálogo entre as pessoas e até a desconstrução da linguagem”, ressalta o historiador e professor Orestes Augusto Toledo ao explicar a atividade dos cinemas de rua que vai além do sistema mercadológico.
Campinas foi marco para o cinema nacional
Campinas já foi uma das cidades de grande destaque no cenário cinematográfico brasileiro, considerada a “Hollywood brasileira” pela relevância que teve nos anos de 1920. Sede do primeiro longa-metragem brasileiro, “João da Mata”, a cidade ocupou o posto de terra do cinema nacional, o que fomentou a vinda de produtores e de escolas cinematográficas para Campinas.
O município chegou a somar 28 cinemas de rua, sendo aproximadamente 13 deles abertos simultaneamente durante os anos 50 e 60, localizados principalmente na região central da cidade. O pioneiro dos cinemas de rua foi o Teatro São Carlos, fundado em 1850, depois dele vieram vários outros, que mantiveram o legado do cinema na região.
Ir ao cinema de rua em Campinas era uma “sensação emocionante”, segundo Lúcia Leite, estudante de odontologia, de 49 anos, que frequentava o Cine Jequitibá e o Cine Windsor na época. Para Lúcia, o cinema de rua marcou sua adolescência e foi uma experiência de proximidade, importante para conhecer novas pessoas e fazer amizades.
Lúcia também se recorda das primeiras vezes que saiu com o seu atual marido para assistir “Sintonia de Amor” e ficou marcado na história do casal até os dias de hoje, trazendo consigo um sentimento de emoção, seguido pelo frio na barriga a cada vez que iam prestigiar um lançamento nos cinemas de rua de Campinas.
O declínio dos cinemas de rua campineiros
De acordo com Hélcio Henriques, dono do antigo Cine Paradiso, cujo início retoma o ano de 1983, com a fita-cassete sendo lançada na década de 1960, o cinema ganhou uma nova forma de entrar em contato com os espectadores, que poderiam assistir aos filmes no conforto de suas casas. Essa não foi a única inovação trazida à sétima arte. Os DVDs ampliaram ainda mais, no final da década de 1990, o acesso aos filmes, o que facilitou tanto a criação de novas locadoras de filmes, quanto a pirataria deles.
Essa mudança no modo de assistir a filmes em casa foi evoluindo com o tempo, que culminou no lançamento das plataformas de streaming ainda na primeira década deste século, as quais mais e mais se mostram como opção acessível para o público, que, com o valor de um ingresso, consegue assinar um desses serviços de streaming.
Outra forma de assistir aos filmes se deu pelos cinemas de shopping. Os quais são mais confortáveis, possuem diversas lojas e atrativos, além de estacionamento e a comodidade de fazer tudo em um só lugar. O historiador e professor Orestes Toledo relaciona isso ao neoliberalismo dos anos 90- acentuado pela guerra fria e pela queda da União Soviética-, uma forma de organização da vida social e política onde o cinema tem que ser no shopping, porque ele é o templo do consumo de mercadorias e de ideias.
Os cinemas de rua constituem ainda uma fase do capitalismo industrial, com as unidades fabris concentrando os operários, muito ligado ao período do capitalismo dos anos 50 e 60. O cinema nasce como mercadoria e é transformado pelo tempo, que o coloca no roteiro do consumo e, consequentemente, dos shoppings. Essa reflexão de Orestes sobre a transição dos cinemas de rua para os de shopping lança um novo olhar para a construção sociocultural daquela época, exemplificada pelos relatos de Maria José e de José Carlos.
Para eles, os cinemas de shopping trazem uma experiência mais direta, você assiste ao filme e vai embora. No cinema de rua, eles relatam que o momento era marcante, pois sempre iam com os amigos ou, mesmo quando fossem apenas os dois, era uma experiência coletiva. Ambos afirmam que os cinemas de rua eram mais populares e, com a chegada das salas de cinema nos shoppings, o acesso foi reduzido, tanto por terem que pagar pelo estacionamento, se forem de carro, quanto por terem que pegar várias conduções, se forem de ônibus, sem contar com os preços mais elevados dos ingressos.
Desde a infância até a adolescência, Orestes viu que a programação dos cinemas de rua era semelhante, a partir da criação de Hollywood e até hoje em dia, com essa hegemonia estadunidense, que compunha cerca de 70% da programação dos cinemas. Ainda assim, havia uma grande presença dos cinemas italiano, brasileiro e de algumas obras da literatura. O público que frequentava os cinemas, não estava preocupado apenas com a qualidade da imagem e de som, mas com a experiência de assistir aos filmes que eram exibidos nos cinemas de rua.
O Cine Paradiso, por exemplo, exibia filmes antigos, independentes e reflexivos, que não eram transmitidos nas redes de cinema hegemônicas. Os cinemas de rua trouxeram para a cidade campineira filmes que não eram absorvidos pela indústria cinematográfica comercial.
Além do fortalecimento dos cinemas de shopping, um outro ponto contribuinte para o declínio dos cinemas de rua é o abandono do centro da cidade, onde ficava a maior parte dos cinemas de rua campineiros, o que dificultou a permanência. A negligência dos centros urbanos, em especial na cidade de Campinas, contribuiu para diminuir o público que frequentava os cinemas de rua. Hélcio pontua que o retorno financeiro, assim como o público, foi atenuando. Sem dinheiro, não havia como o Cine Paradiso se modernizar para se equiparar aos cinemas de shopping.
Mesmo que Campinas tenha perdido o status de terra do cinema nacional, a história permanece como um marco importante para o cenário cultural da cidade. Apesar do predomínio dos cinemas de shopping, a memória dos cinemas de rua e dos cineclubes permanece viva e fica marcada por aqueles que aproveitaram esses anos de ouro, buscando preservar a essência do cinema ao assistir, refletir e dialogar sobre obras que vão além das barreiras culturais.
Orientação: Prof. Gilberto Roldão
Edição: Giovanna Sottero
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