Destaque
O filósofo indígena Ailton Krenak lamenta rumos da sociedade com as consequências do consumo atual
Por Daniel Ribeiro e Amanda Poiati
Aos quase 70 anos, Ailton Krenak é uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro. Ele participou e protagonizou eventos históricos, como a Constituinte de 1988 e a criação da Aliança dos Povos da Floresta. Da etnia crenaque, Ailton é professor honoris-causa da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), onde leciona disciplinas de história indígena e artes tradicionais.
Autor da trilogia Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro ancestral, Krenak critica valores da sociedade de consumo, ideologia que fomenta a competição e valoriza os que querem “levar vantagem em tudo”.
De acordo com ele, a sociedade branca precisa se preocupar em viver a vida comunitária. “Fazer arminha com a mão, acertar a testa do outro… você não está criando uma comunidade, está predando”, diz o indígena. Em sua concepção de vida, só existe o “bem” se ele for o bem comum. “Sucesso sozinho não vale nada”.
Na última sexta-feira (10), quando visitou Campinas para um evento na Unicamp, Krenak concedeu entrevista ao Digitais, no local em que se hospedou, na Casa do Professor Visitante (CPV). Retomando ideias que defende em suas obras, Krenak falou sobre minorias, educação e vida coletiva, alguns dos pontos chaves de suas preocupações.
A seguir, trechos da entrevista:
Qual a relação entre a invisibilidade de minorias e a depredação de recursos naturais?
Agora há pouco, me contaram que há comunidades tradicionais no caminho de onde será feita uma hidrovia, que vai partir do Pantanal, arrasando o território dessas comunidades, e que isso é um dos empecilhos para o licenciamento da obra. Mas eles estão avançando com o projeto e vão acabar fazendo mesmo assim. A invisibilidade dessas pequenas comunidades está estreitamente relacionada com a apropriação e a tomada desses territórios pelo mercado, pelas corporações, pelas empresas. Quando os Yanomami aparecem na mídia como vítimas do garimpo e da mineração, o corpo deles é o que atrapalha aquela atividade econômica. Então, se os tornar invisíveis e desaparecer com essa gente, tudo fica disponível para a apropriação. É mais ou menos como se dissessem “Se não houvesse minorias, seria melhor”.
Em “A vida não é útil”, você afirma que a educação branca é carente de experiências geracionais e do sentimento de ancestralidade. Como é possível trazer essas experiências para uma sociedade em que a educação já é estruturada para ser utilitária?
Talvez devêssemos pensar na hipótese não de levar isso para lá, mas de tirar pessoas daqui para um outro tipo de experiência social e educativa. Tem um português chamado José Pacheco, criador da “Escola da Ponte”, que veio para o Brasil difundir uma ideia de comunidade educativa. Ao invés de ter uma escola, há uma comunidade que é plural e busca o conhecimento como maneira de continuar produzindo uma experiência positiva na vida sem ser uma escola. Afinal, a escola é um lugar de reprodução e uma comunidade de aprendizagem é onde todos aprendem com todos. Onde todos aprendem com todos, ninguém molda ninguém. Aí se escapa dessa reprodução do mesmo. Você não vai soltar gente pra destruir o mundo. Você vai dar uma oportunidade para pensar outros mundos.
Sobre individualismo e coletividade, qual a diferença desses dois conceitos, quando se compara as perspectivas de povos tradicionais e as da sociedade de consumo?
Na África, existe um termo que se chama ubuntu, que seria “eu só existo porque você existe” ou “eu sou porque você é”. Ou seja, não há um jeito de a pessoa “ser” sozinha. Ela não pode ser indivíduo, lá a experiência do indivíduo não é estimulada e nem ganha espaço. Pelo contrário, o individualismo é censurado. Já nessa sociedade em que vivemos, a pessoa é treinada para ser indivíduo. É estimulada à competição, ganha prêmios, se destaca, ganha mais e tem vantagens. A ideia do egoísmo é elogiada. Ser um cara egoísta é “bom”, porque isso te prepara para ser “vencedor”. Um executivo de uma corporação é o próprio ego estabilizado, ele quer vantagem. Antigamente, tinha uma propaganda no rádio e na televisão brasileira, na qual um jogador de futebol encerrava com a seguinte frase: “Você tem que levar vantagem em tudo”. Ou seja, enfiavam isso na cabeça de crianças e de adultos. Com isso, você tá criando um capeta pra ficar no mundo, fodendo a vida dos outros. Se você cresce, se desenvolve e se prepara com a mentalidade de levar vantagem em tudo, vai levar vantagem em relação ao seu irmão, amigos, colegas. Não vai contribuir para existir uma comunidade, só vai aceitar pessoas para te servir. Equivale a uma comunidade de seguidores, o que é uma ideia muito pobre, autoritária. Recentemente vivemos uma experiência em nosso país, onde tinha um sujeito que achava que os outros eram lixo, que ele podia manipular todo mundo, mentir, predar tudo, e que isso era um exemplo de sucesso. Ser forte, fazer arminha com a mão, acertar a testa do outro… a questão é que sempre tem um outro, e quando acerta esse outro, você não tá criando uma comunidade, está predando. Só tem bem, se é comum. Não existe o “bem” sozinho. Sucesso sozinho não vale nada.
Voltando ao livro, há um trecho que diz: “Deixamos de ser sociais porque estamos num local com mais de 2 milhões de pessoas”. O que quer dizer?
Isso que chamamos de civilização nunca foi tão expandida a ponto de acharmos natural ser um indivíduo no meio de dois milhões de pessoas. Essa experiência é terrível, porque ela diz que se não for esperto você não existe. Aí você investe em esperteza pra poder existir, mas é uma mentira porque isso vira solidão, você vai ficar sozinho… Por mais que seja bem sucedido, vai ser bem sucedido e sozinho, não adianta nada. Se continuarmos reproduzindo essa humanidade de bilhões de pessoas, não vai mais haver lugar para alguém pensar, ter singularidade, ser uma pessoa. Ele, o indivíduo, vai ser sempre massa.
Isso se correlaciona com o que conversamos anteriormente. Então, para ser um indivíduo, é preciso literalmente de um coletivo?
Precisa, para você ter uma individualidade saudável, senão fica doente. O problema não é ser um indivíduo, o problema é ser sozinho, é competir tanto que você não deixa ninguém ficar ao seu redor, uma terra arrasada. Eu li essa semana uma frase do panaca do Jeff Bezos, onde ele dizia “Eu não suporto conviver com gente que não é criativa, prefiro ficar sozinho”. Ele disse isso, está ecoando por aí, aquele cara é um megalomaníaco, um doente, mas ele é um exemplo para muita gente que quer ser rica igual a ele, esperta igual a ele. É considerado um dos caras mais ricos do planeta, o mais “empreendedor”. Pra mim, ele é doente, mas ele tem muito seguidores, pessoas que admiram ele, adoram ele. Quando ele fala que não suporta gente não criativa, o que ele quer dizer é o seguinte: “Eu sou criativo, e não quero ninguém perto de mim que não esteja competindo comigo”. É mais ou menos como um lutador que sai dando socos em todo mundo e não para, porque ele quer sempre encarar mais alguém. A experiência de vida dele é competir. Tem um pensador chamado Ladislau Dowbor, que diz que a única coisa que se expande indefinidamente é o câncer, que natureza não tem mais nada que faz isso, tudo tem contorno, limitação, colaboração.
Então pode-se dizer que criamos um comportamento fora do natural?
Fora do natural. Eu costumo dizer que o ser humano experimenta uma espécie de colapso, um abismo cognitivo, chegou em um buraco que não consegue transpor. Aqueles que ainda pertencem aos coletivos, comunidades, constelações de gente, se alimentam dessa constelação para continuar sendo pessoas saudáveis. Os que não estão nisso caíram nessa espécie de cilada, de ter que competir o tempo todo.
E como é possível mudar isso?
Evitando tudo que acharmos antivida.
Mas só evitar não vai fazer acabar, certo?
O primeiro gesto é evitar, porque na hora que evitar vai criar um espaço para atuar. Porque se você tentar entrar já atuando, vai quebrar a cara. Então evite, observe e descubra como você pode criar trilhas, passar entre mundos, produzir uma experiência boa, mesmo que em sua volta o pau esteja quebrando. Há pessoas muito frágeis, que quando entram nesse turbilhão perdem a personalidade e começam atuar como manada. Aqueles caras que invadiram Brasília, quebraram tudo, fizeram um monte de besteiras, pessoas assim perdem a personalidade, perdem a capacidade de entender o que tá acontecendo e começam agir de uma maneira violenta, irascível. E acham que estão certos, que quem não é igual a eles, eles têm que matar. Na época que estavam fazendo o impeachment da Dilma, houve um caso de um menino andando em São Paulo com uma camiseta vermelha. Chegou um grupo de caras classe média, encurralaram e começaram chutar e xingar ele, só porque ele estava usando uma camiseta vermelha. Ninguém foi punido, essas pessoas simplesmente queriam extirpar quem fosse diferente deles.
Quer dizer que o objetivo do indivíduo é para o coletivo, é como um ciclo. Isso por si só já não é um propósito, uma utilidade da vida? O que quer dizer quando fala que a vida não é útil?
É uma atividade dentro da vida, mas ela não torna a vida útil, não é uma utilidade. Utilidade seria fazer um curso pra gerente de loja, é útil porque vai produzir algo pra você. Nesse caso (confundir utilidade com atividades ou propósitos) é um equívoco, porque você está maquinando sua experiência da vida, quando na verdade ela é gratuita. Ninguém tem que pagar pra viver, não deveria.
O que é desfrutar da vida pra você?
Eu não desfruto, eu fruo da vida, a vida é fruição. Fruir a vida é experimentar a existência como uma maravilha, aproveitar. E para isso não é preciso dinheiro nem diploma. É um dom que veio pra gente. As pessoas acham que depende de beleza, raça e até religião. O que você quer da vida? Frua dela.
Pra finalizar, sobre poesia, sei que ela é importante para você. Isso é um escapismo de um mundo que está em colapso, ou um filtro pra enxergar as coisas boas que ainda restam?
Pra mim, a poesia é a própria fruição da vida. Cantar, dançar, é a fruição da vida. Nosso corpo existe pra isso. Nosso corpo demanda isso, porque é o que dá sentido na vida, é o próprio dom dela. Os passarinhos acordam de manhã, e sabe o que eles fazem? Cantam. Cantam porque amanheceu o dia, acordam a gente. Eles não pensam. Senão, iam acordar e pensar “acordei, vou ir fazer um trampo”. Um peixinho dentro d’água, ele não pensa “eu sou um peixinho dentro d’água”. Ele só vive. O humano não, o humano pensa “eu sou um corpo, aqui”. O melhor seria que não pensasse, que simplesmente experimentasse a vida, se está calor ou frio. Se está em um lugar hostil, procurar um acolhedor. Se está sendo predado, sair dali, viver.
Orientação: Prof. Carlos A. Zanotti
Edição: Melyssa Kell
Veja mais matéria sobre Destaque
Provão Paulista incentiva estudantes da rede pública
Desde 2023, a prova seriada se tornou porta de entrada para as melhores universidades do Estado de São Paulo
Sistema de Educação ainda requer ajustes para incluir alunos PcD na educação física
Apesar dos avanços na educação, alguns profissionais ainda se sentem despreparados para lidar com esse público nas aulas
Revolução na luta contra Alzheimer: Unicamp lidera avanços com IA na inovação farmacêutica
Pesquisas inovadoras unem tecnologia e biociência na busca de tratamentos eficazes para doença neurodegenerativa
Projeto social promove atividades pedagógicas em escolas de Campinas
São pelo menos 280 jovens mobilizados nos encontros e quatro escolas que abraçam as atividades propostas
Valinhos é eleita a cidade mais segura do Brasil em 2024
Uso de tecnologia e aumento de 30% no efetivo da Guarda Civil Municipal aumentam a segurança e a qualidade de vida na cidade
Novembro Azul destaca o papel da hereditariedade no avanço do câncer de próstata
Especialista explica como o fator genético pode acelerar o câncer masculino