Destaque
Objeto foi desenvolvido por tecnóloga e impacta positivamente no bem-estar de população em maior vulnerabilidade
Por: Bárbara Marques
O aumento de moradores em situação de rua na pandemia de Covid-19 e a alta demanda por abrigos nas épocas de frio foram fatores que fizeram a estudante do curso Têxtil e Moda da Faculdade de Tecnologia do Estado (Fatec) de Americana (SP) a criar um colchonete solidário feito com retalhos e pêlos de cachorro.
O projeto, que foi entregue para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Ana Beatriz dos Santos, de 32 anos, foi inspirado quando ela percebeu que suas duas cachorras lhasa-apso tinham pelos de sobra e eram muito generosas ao distribuí-los pela casa da Bia, como prefere ser chamada, que fica em Piracicaba (SP).
Segundo a tecnóloga, os testes demonstraram que o pelo do cachorro garante um conforto térmico semelhante à lã de ovelha. Por isso, o colchonete pode impactar na saúde física e mental da população mais vulnerável, pois proporciona mais dignidade para ajudar a enfrentar as condições de vida precárias, como o contato direto com chão, frio, chuva e doenças. “Representa uma melhora, ainda que seja mínima”, diz Bia, que apesar de se orgulhar da criação, afirma que o projeto não deveria existir. “Porque ele vem pra suprir uma necessidade que não deveria existir, mas como existe, a gente tem que pensar em formas de tentar auxiliar”, garante.
Agora, Bia já não é a mais a estudante que idealizou o projeto: ela é tecnóloga formada e premiada na Feira Tecnológica do Centro Paula Souza (Fetesp), porém a desigualdade social não mudou muito. Essa realidade ficou evidente em maio de 2022, quando o frio chegou com força na região de Campinas (SP).
Como é feito?
Para confecção do protótipo, a estudante conseguiu doações de um pet shop e descartes da indústria têxtil. Segundo ela, a matéria-prima para o colchonete é abundante e encontrada a um custo quase zero.
A estrutura externa do colchonete é feita por retalhos têxteis. No comprimento, há três divisões onde as almofadas, preenchidas com as fibras de cães, são colocadas. O processo não inflige maus-tratos a animais.
Os fios são higienizados antes de serem reutilizados. Durante o processo de limpeza, a estudante percebeu que qualquer tipo de pêlo pode ser utilizado, já que as fibras se unem e formam uma espécie de feltro.
A dificuldade, no entanto, é que a higienização exige equipamento especializado e industrial para a limpeza. Por isso, a próxima etapa é buscar uma empresa que possa ampliar a pesquisa na parte da lavagem dos pelos, fundamental para a confecção do colchonete solidário.
Aqui, ouça Ana Beatriz falar sobre o projeto e como ele compreende o tripé da sustentabilidade:https://soundcloud.com/barbara-marques-896443063/tripe-da-sustentabilidade?utm_source=clipboard&utm_medium=text&utm_campaign=social_sharing
Reconhecimento
Foi durante as aulas da professora Maria Adelina fibras têxteis e meio ambiente. Coordenadora do TCC de Bia, ela destacou como o projeto Cão Amigo pode colaborar para a redução do sofrimento dos cidadãos em situação de rua: “A viabilidade do projeto foi confirmada pelo Fundo Social de Solidariedade de Americana, que esteve representado na banca de avaliação do trabalho”, afirma.
Além da nota máxima, os conhecimentos do curso de moda utilizados como forma de transformação social foram reconhecidos na 13ª Feira Tecnológica do Centro Paula Souza (Feteps), em 2021, onde Bia foi uma das premiadas. “O pessoal vê moda e acha que é apenas roupa. Mas também é uma forma de pensar nas pessoas que existem por trás das roupas que vestimos”, diz a estudante.
Quando o frio chega
Em 2022, meses depois de Bia entregar o seu TCC, o frio voltou para a região de Campinas. Ele chegou no dia 20 de maio. De acordo com o Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp, neste dia, a metrópole registrou o segundo dia mais frio no mês de maio desde 1989.
A frente fria não chegou sem avisar. Tanto é que, sob o alerta de queda brusca nas temperaturas, a Prefeitura de Campinas (SP) anunciou o aumento de 33% nas vagas em abrigos para pessoas em situação de rua. Porém, na noite mais gelada, das 220 vagas oferecidas para a população vulnerável, 170 foram preenchidas na noite mais gelada do ano até então: 50 camas ficaram vazias.
Conforme Vandecleya Moro, secretária de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas, mesmo com o frio, muitas pessoas em situação de rua se recusam a ir para os abrigos por conta das regras das acomodações: não é permitido levar bebida alcoólica, animais de estimação, seguir horários para comer, dormir e acordar à risca.
Esse foi o caso de Anderson Lopes de Souza, de 59 anos. Ele é morador em situação de rua e chegou na metrópole há 20 anos. Na noite mais fria em Campinas, ele lutou contra as baixas temperaturas: “Passei muito frio, eu achei que ia morrer aqui”, diz Sousa.
Excluídos do acolhimento
Souza é alcoólatra e, portanto, não é acolhido nos abrigos: “Não aceitam gente que bebe, então tenho que ficar na rua mesmo”, contou. Apesar da boa vontade das pessoas que doam cobertores e casacos, às vezes eles não são suficientes para um frio com temperaturas mínimas de 1,5ºC, como o que fez na região na madrugada de sábado, 21 de maio de 2022, de acordo com as medições do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
Souza exibe com orgulho o passaporte. A polícia já tentou levar o documento dele, mas ele conta que teve forças para resistir e manter o único registro que lhe restava. “Isso aqui [o passaporte] é uma prova que eu já fui alguém um dia”, afirmou. Mas não foi apenas o registro que já tentaram tirar dele: Souza relata que até mesmo os cobertores são levados pelos cata-trecos da prefeitura: “Eles arrancam [os cobertores] da gente. Já levaram até a mochila de alguns”, revela.
Conservar os poucos objetos que restaram é uma forma de manter a dignidade, e também reflete nos dados da prefeitura da metrópole. O Bagageiro Municipal, espaço onde é possível armazenar pertences pessoais como roupas, cobertores, documentos e material de higiene, registrou 16.254 atendimentos desde a sua inauguração até abril deste ano.
Porém, um objeto que proporciona mais conforto térmico, já que é feito de pelos, e pode ser facilmente transportado pois tem alças, seria mais um artefato para ajudar a população vulnerável a enfrentar as dificuldades das ruas. Além disso, seria algo para chamar de seu.
Ao saber do projeto do colchonete solidário de Bia, Souza ressaltou, emocionado, a importância de ações como essa. Para ele, “as pessoas não gostam da gente”. Saber que alguém está se dedicando para tornar a vida dele um pouco mais fácil o ajuda lembrar que ele também tem direitos.
Orientação: Prof. Gilberto Roldão
Edição: Sophia de Castro
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