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Com 40% da produção nacional, cultivo da planta é pilar econômico do agronegócio no RS

Por: Fernanda Machado
Na tradição do gaúcho, não há nada melhor do que acordar no clarear do dia para sorver e desfrutar de um ótimo chimarrão. A infusão – alcunhada pelo compositor e cantor Jayme Caetano Braun como “sangue verde do meu pago” – tem como ingrediente principal a erva-mate, o principal produto não madeireiro do agronegócio florestal na região Sul do país. O cultivo da planta, cujo consumo é uma herança do povo guarani, movimentou cerca de 200 milhões de reais no Rio Grande do Sul em 2019, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estado conta com cinco polos ervateiros, que correspondem às regiões Alto Uruguai, Nordeste Gaúcho, Região dos Vales, Alto Taquari e Missões/Celeiro. É neste último polo que se encontram os municípios de Palmeira das Missões e Novo Barreiro, que juntos responderam por mais de 10% do valor arrecadado pela produção da erva-mate em terras gaúchas no referido ano. Segundo a prefeitura de Novo Barreiro, o setor reúne 21 produtores e 16 agroindústrias naquela pequena cidade.

O ex-coordenador do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Romário Rossetto, exalta a importância da erva-mate para a economia local ao afirmar que “as empresas ervateiras geram em torno de 200 empregos diretos num município de cerca de 4000 habitantes”. Além disso, Rossetto – que é locutor na Rádio Voz Comunitária – destaca a vocação de Novo Barreiro para o agronegócio e o fato de a erva-mate ser uma espécie nativa: “há outros produtos, como a soja, o milho e a pecuária de suínos e aves, mas a erva-mate é o principal. Por estar bem adaptada ao ambiente local e casar com vários outros tipos de cultivos, é uma árvore perfeita para desenvolver um sistema de agrofloresta – um modelo que combina agricultura com vegetações nativas, sendo menos impactante para o solo”.
UMA TRAJETÓRIA QUASE CENTENÁRIA

A história da extração e do beneficiamento da erva-mate em Palmeira das Missões confunde-se com a história da própria região. Nascido no então distrito de São José das Missões, emancipado de Palmeira das Missões em 1992, Epitácio de Quadros, 95 anos, relembra com saudosismo o tempo em que trabalhou como comerciante junto com seu pai Tibúrcio, durante a infância. “Naquela época, eu morava em Bela Vista, uma comunidade do interior de Novo Barreiro. Ainda não havia casas, só tinha um ranchinho onde hoje é a igreja. Uma vez eu vendi uma carga numa propriedade perto do encontro do Rio do Macaco com o Rio da Várzea. Eu fui numa canoa de madeira, carreguei a erva, coloquei o animal – que era um burro de carga – na embarcação e descemos a corredeira até chegar num porto na fazenda. Eu tinha uns 10 anos, mais ou menos”.
Em 1985, Epitácio ajudou a fundar o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) dentro da igreja em Bela Vista. A motivação foi ter um lugar apropriado para organizar e celebrar a cultura e os costumes gaudérios. “Para fazer festas e desfiles, sempre havia problemas com os vizinhos, a gente precisava de policiamento. Trabalhei por anos ajudando na Querência da Palmeira, fiz parte da diretoria e deixei muitas amizades. Houve uma reforma linda no CTG, que era de madeira e estava caindo. Eu recebi até uma homenagem lá quando ficou pronto, fiquei muito feliz, porque mesmo nessa idade, Deus me deu a oportunidade de estar nessa comemoração ao lado da minha esposa”, relembra a perda da companheira – a senhora Nilza Jahm de Quadros – em setembro de 2021.
O tradicionalista ainda explica como era feito o preparo da erva-mate para a comercialização antigamente. “Fazíamos um jirau no templo e o fogo que ficava embaixo, o braseiro, secava a erva. Esse processo, o sapeco, era trabalhoso, pois cortavam a erva logo cedo. Depois era cancheada – cortada – a facão, empacotada e levada até o rio, onde era moída nos monjolos para ser vendida. Durante o sapeco, declamadores e violeiros se reuniam nas rondas, tinha bochincho, prosa e poesia. Hoje, esse processo é industrial.”
O OURO VERDE DA QUERÊNCIA

Assim como o processo de beneficiamento, as formas de consumo da erva-mate também se inovam com o passar do tempo. Além do chimarrão, símbolo da hospitalidade do gaúcho, a planta tem descoberto novos mercados na farmacologia e na medicina fitoterápica, apoiada pelo interesse de estudiosos em seus princípios ativos, os quais permitem ao setor agregar valor ao produto e sonhar com mais investimentos e desenvolvimento de tecnologias.
Dados da Embrapa de 2019 apontam que a planta apresenta propriedades como alto teor de cafeína, teobromina e saponina, o que potencializa novos produtos como chás, energéticos e outras bebidas, além de cosméticos e produtos de limpeza que têm a erva-mate como matéria-prima. Ainda segundo a instituição, o crescimento das oportunidades e as melhorias no sistema produtivo contribuem para uma maior competitividade.
De acordo com o artigo “Erva-mate, muito mais que uma tradição, um verdadeiro potencial terapêutico”, de autoria dos pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alessandra Andriola, Ana Gabriela Gauer, Guilherme de Freitas e Larize Ienk, a erva-mate pode ser fonte de minerais e vitaminas, além de ser indicada como anti-inflamatório, antirreumático, tônico, diurético e como estimulante.
UMA FARMÁCIA CULTIVADA NOS CAMPOS GAUDÉRIOS

Além da erva-mate, outras plantas nativas da região Sul têm sido exploradas devido às suas propriedades bioquímicas. É no município de Hulha Negra, quase na fronteira com o Uruguai, que reside o frei franciscano Wilson Zanatta, um pesquisador popular das Ervas Medicinais e escritor de 10 livros sobre o assunto. De acordo com ele, a ideia teve origem nos assentamentos rurais da cidade. “Eu fazia um programa na rádio em que a gente dava receitas de remédios caseiros. Ao visitarmos as comunidades, os ouvintes nos pediam por escrito, pois não conseguiam anotar. Então lançamos uma cartilha e assim começamos a desenvolver todo esse trabalho.”
O Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ) foi fundado em 2004, e tem como objetivo estimular o desenvolvimento agrícola e a melhoria das condições de vida da população rural mais carente e das comunidades indígenas, de maneira sustentável e visando a preservação ambiental. Segundo Zanatta – que é membro e coordenador de projetos – o instituto conta com o apoio de gente ligada ao MPA, ao Movimento Sem Terra (MST) e quilombolas em todo o Rio Grande do Sul. Entre as atividades, ele destaca os cursos ministrados nos assentamentos. “Trabalhamos em mais de 30 comunidades, é uma prática que herdei dos meus pais. É interessante despertar esse interesse nas pessoas.”
É no entorno da casa de freis, onde vive Zanatta, que se encontra uma área de 50x200m na qual o ICPJ cultiva cerca de 130 tipos de plantas e árvores medicinais. Embora algumas espécies sejam endêmicas dos pampas gaúchos, a maioria delas pode ser cultivada em quase todo o território brasileiro.
O LEGADO INDÍGENA NA MEDICINA FITOTERÁPICA

Um dos destaques dos jardins da casa de freis é a guaçatonga, espécie nativa da flora brasileira e cujo nome, no idioma antigo guarani, significa “cura tudo”. Autor do livro “O poder curativo da Guaçatonga”, Zanatta explica que a planta, popularmente conhecida como erva de bugre, ajuda no combate a enfermidades como herpes labial, alergias, gastrite, cálculos renais, entre outras. Além disso, ela é um excelente cicatrizante para picada de bichos peçonhentos, como cobras, escorpiões e aranhas.
Segundo o artigo “A guaçatonga (Casearia sylvestris Sw.) e seu uso potencial como fitoterápico”, dos pesquisadores Luiz Kulchetscki, César Quaquarelli e Pedro Lima, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), as propriedades terapêuticas da erva já eram exploradas pelos povos originários da América do Sul. O estudo comprovou a eficácia de uma solução preparada com folhas novas de guaçatonga no tratamento de uma necrose na pata de um cachorro no distrito ponta-grossense de Itaiacoca.
Outra espécie originária bastante difundida nas comunidades de Hulha Negra é a baleeira, muito utilizada contra gripes e infecções, por agir como um antibiótico natural. O nome se deve a pescadores que, ao se machucarem pescando baleias, passavam as folhas nas feridas e percebiam seus efeitos cicatrizantes. Típica das regiões de Mata Atlântica, é conhecida há séculos por comunidades caiçaras e, de acordo com o frei Zanatta, é muito exportada pelo Brasil como medicamento.
EM HARMONIA COM A TERRA
Existem alguns cuidados no manejo em relação à extração de alguns produtos para fins medicinais. Segundo o coordenador técnico do ICPJ, Marcelo Bernál, “o início da manhã é o período mais adequado, por haver uma concentração maior dos óleos essenciais dos princípios ativos nas folhas e flores”. Mestre em tecnologia ambiental pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Bernál ressalta que há exceções, “algumas espécies em que somente a casca da árvore é utilizada, por exemplo, podem ser colhidas em qualquer hora”.

Quando questionado sobre os impactos do plantio de espécies fitoterápicas no solo, Bernál, que é engenheiro florestal pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), explica que o sistema de produção adotado pelo ICPJ e seus agregados – pequenos hortos comunitários com cerca de 100 m² – não causa alterações significativas na composição bioquímica do solo, diferente do que pode acontecer em plantios de larga escala.
O uso de plantas medicinais, bem como o descobrimento de seus princípios ativos por meio da ciência, seria impossível sem a preservação dos ecossistemas nativos. Além de mitigar os efeitos da ação humana, é um benefício proporcionado por um modo de produção mais conectado aos biomas originais. Um olhar para o passado que remonta aos indígenas, mostrando que a cura não está na erva-mate, na guaçatonga ou na baleeira, mas sim no respeito à natureza e ao meio ambiente.
Orientação: Profª Cyntia Andretta
Edição: Caroline Adrielli
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