Cultura & Espetáculos

Café: a importância de cultivares

Estudos para o melhoramento genético propiciam novas vantagens produtivas para o setor da cafeicultura

Café desempenha papel relevante na economia brasileira. Crédito: Fernanda Machado

Por: Fernanda Machado

A relação da humanidade com o cafeeiro vem literalmente desde o berço, pois assim como o Homo sapiens, a planta teve sua origem na região nordeste da África, em território que atualmente pertence à Etiópia. Na história do Brasil, o café teve papel preponderante na economia entre o final do século XIX e o início do século XX, sendo o principal produto de exportação desde a época do Império até a Era Vargas. Hoje, o Brasil é o maior produtor de café do mundo, com 14,7 milhões de toneladas produzidas entre os anos de 2017 e 2020, o que corresponde a pouco mais de um terço de todo o café produzido no planeta no período, segundo dados da International Coffee Organization.

Fonte: International Coffee Organization
Seção de Genética do IAC é voltada para trabalhos de melhoramento genético do cafeeiro. Crédito: Fernanda Machado

A crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, teve grande impacto na cafeicultura brasileira e causou grandes transformações sociais no país. No mesmo ano, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) criou a Seção de Genética, voltada para trabalhos de melhoramento genético do cafeeiro. De acordo com o pesquisador científico do IAC, Sérgio Pereira, os estudos na área têm como função principal entregar novos cultivares. “Ao longo dos anos, construímos um banco de genética vivo, que chamamos de germoplasma. A gente traz muito material genético, principalmente da África, e adapta nos cruzamentos com nossos cafeeiros por meio da polinização assistida”, explica ao citar dois casos de sucesso desenvolvidos pelo Instituto: “o Mundo Novo, lançado nos anos 50, e o Catuaí, nos anos 70, ainda hoje representam cerca de 80% da produção do tipo arábica no país”.

Em relação ao processo de polinização assistida, o engenheiro agrônomo explica que, “num certo ponto da florada é preciso retirar a parte masculina da flor e introduzir o pólen de uma outra flor com características selecionadas. Quando crescem os primeiros frutos, você sabe que metade da carga genética é da planta mãe, e a outra parte vem do pólen de uma outra planta. E por meio desse processo você começa um programa de melhoramento genético, que pode demorar até 40 anos – ou seis gerações – para se estabilizar”.

Em homenagem aos 125 anos da fundação do IAC, comemorado em 2012, foi lançado o cultivar IAC-125. Um de seus adeptos é o agricultor Cid Manicardi, que tem planos para implementá-lo numa área de 2500 m² em sua propriedade. De acordo com ele, o cafeeiro produz frutos graúdos de boa qualidade e coloração avermelhada próxima ao roxo, sendo também chamado de “café uva”. Além disso, a planta apresenta alta produtividade e resistência à praga ferrugem.

REGENERANDO VIDAS

Manicardi cultiva a tradição cafeeira do município de forma inovadora e mais ecológica. Crédito: Fernanda Machado

É num sítio de sua propriedade no distrito de Sousas, em Campinas, que Manicardi cultiva a tradição cafeeira do município de forma inovadora e mais ecológica. Por meio da integração de outras espécies junto aos cafezais num Sistema Agroflorestal (SAF), ele otimiza o uso da terra. “Tenho linhas de cafeeiros plantados como na monocultura e, entre elas, eu consigo consorciar outros plantios como abacate, mamão e banana. Então em um único hectare eu tenho o equivalente a uns 4 ou 5 hectares de plantação”, explica o produtor.

Além disso, o agricultor ressalta que essas árvores “fazem muita adubação por causa da matéria orgânica, chamada de serrapilheira, que depositam no solo”. De acordo com ele, ao introduzir arroz cozido embaixo da serrapilheira, obtém-se um colorido de fungos que serve de matéria prima para um tipo de fertilizante natural. “Você coloca em um tambor e mistura com melaço de cana, por exemplo, e deixa fermentar por uns 45 dias obtendo um caldo rico em microbiotas. Se você puxar a terra aqui, tem minhoca, tatu bola e outros pequenos seres, como fungos e leveduras. Este é o conceito de agricultura regenerativa”, observa.

Integração de outras espécies vegetais junto aos cafezais num Sistema Agroflorestal (SAF). Crédito: Fernanda Machado

Quando questionado a respeito da viabilidade de um SAF na cafeicultura de larga escala, Manicardi analisa que “não se pode plantar grandes árvores na linha do café, porque o maquinário não passa. Uma alternativa é o fumo bravo, que é uma árvore de médio porte e muito adaptável, propícia para reflorestamento”. O potencial de implementação dessa metodologia é amplo, uma vez que a cafeicultura no Brasil ocupa uma área de 2,24 milhões de hectares, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

No sítio, Manicardi utiliza três métodos para secagem de café: A – secador solar (ou estufa) e terreiro de cimento. B – terreiro suspenso. Crédito: Fernanda Machado

Cid Manicardi introduziu a cafeicultura em sua propriedade no ano de 2007, mas “a maioria morreu porque o solo era muito pobre”. A produção anual variava de três a cinco sacos de café, quando foi iniciado o trabalho de recuperação do solo em 2018. Desde então, “a safra do ano passado foi a primeira e rendeu 20 sacos. Para este ano, nossa estimativa é de 39,5”, afirma o produtor de café ao ressaltar a função social de seu negócio. “Nós empregamos seis mulheres na colheita, nossa preocupação vai além de somente cumprir as leis trabalhistas.”

REDUZINDO O CARBONO

A coordenadora de clima do Imaflora, Renata Potenza: “objetivo do Carbon On Track é entender quais fontes contribuem mais para a emissão de gases estufa na produção do campo”. Crédito: Arquivo pessoal

Outro exemplo na busca por uma cafeicultura mais sustentável é a parceria estabelecida pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) com o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), que monitorou as emissões de carbono em 40 fazendas no interior de Minas Gerais. De acordo com a coordenadora de clima do Imaflora, Renata Potenza, o objetivo do programa foi identificar as fontes que “contribuem mais para a emissão de gases estufa na produção e como reduzi-la”. As maiores fontes na cafeicultura tradicional são a queima de combustíveis fósseis pelo maquinário e, em maior grau, o uso calcário e fertilizantes nitrogenados. Nesse sentido, a engenheira florestal ressalta a importância de “entender a realidade da região em estudo e analisar o solo, a fim de fazer aplicações mais eficientes ou até substituir produtos como a ureia por compostos orgânicos”.

Os resultados do monitoramento nas fazendas mostraram que aquelas que adotam as chamadas boas práticas, como manter a cobertura original do solo e reduzir o uso de fertilizantes nitrogenados, apresentaram um sequestro de carbono seis vezes maior quando comparado às que usam práticas mais conservadoras, segundo Renata. O diretor técnico do Cecafé, Eduardo Heron, observa que mesmo a cafeicultura tradicional apresenta um balanço de carbono favorável, retirando anualmente 1,63 t CO2/ha da atmosfera. Além disso, ele destaca que “nas propriedades de café há, em média, 50 t de carbono estocado na forma de florestas para cada hectare cultivado”.

DAS LAVOURAS BRASILEIRAS PARA O MUNDO

Congestionamento dos portos é um problema de escala global. Crédito: Banco de imagens/Pixabay

Uma das principais atividades do Cecafé é a logística, coordenando operações desde as fazendas até a entrega nos principais portos do planeta. Segundo Eduardo Heron, os maiores custos na exportação do café “consistem no armazenamento, beneficiamento, estufagem, transporte terrestre e despesas portuárias”. Além disso, Heron alerta para o fato de o café ser vulnerável às condições ambiente, exigindo cuidados como controle de temperatura e umidade. Em relação aos desafios, ele explica que o congestionamento dos portos é um problema global e “reduz a disponibilidade de navios e contêineres aos países produtores”.

A crise nos portos foi agravada com a guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro deste ano. De acordo com o presidente da CropLife Brasil, Christian Lohbauer, o custo dos fretes aumentou sete vezes em função da redução das linhas, afetando um “sistema que já estava sob o fio da navalha”. Além do cancelamento de entregas, houve a suspensão de rotas para os países em conflito e o desvio de cargas para portos vizinhos. Eduardo Heron observa que “apenas o transportador marítimo MSC Mediterranean Shipping Company passou a levar as cargas, mediante assinatura de LOI – uma carta de intenção. Outro impacto foi a exclusão da Rússia do sistema financeiro mundial Swift, causando dificuldades nos pagamentos”.

O diretor executivo da ABIC, Celírio Inácio: “pandemia afetou não só financeiramente, também trouxe muita insegurança de abastecimento”. Crédito: Arquivo pessoal

Na análise de Celírio Inácio, diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), a questão na dinâmica comercial dos portos teve origem na pandemia, a qual “trouxe muita insegurança de abastecimento”. Em relação à cadeia produtiva, ele explica que as etapas são recebimento da matéria-prima, composição do grão de torrefação, moagem e embalagem, sendo uma atividade de baixo impacto ambiental. “Os pontos mais críticos são as indústrias que utilizam torradores a lenha e as embalagens no pós-consumo, que vem sendo solucionado pela alta adesão das empresas ao plano nacional de logística reversa”, ressalta.

UM MERCADO SELETIVO

Visando atender as exigências de seus consumidores, as indústrias vêm monitorando seus processos e analisando quais aspectos influenciam na qualidade do café, caracterizadas pelo sabor e aroma. Segundo Celírio Inácio, “a matéria prima, a torra, a moagem e até o tipo de embalagem afetam os atributos da bebida”, os quais são qualificados por meio de técnicas de análises químicas sensoriais. Além disso, “desde 2004 com o lançamento do Programa de Qualidade de Café, a ABIC certifica a qualidade do produto”, destaca.

Em relação às diferentes espécies, o agrônomo Sérgio Pereira explica que o café solúvel geralmente é feito de canéfora, por ser mais barato e apresentar um teor de sólidos solúveis maior quando comparado ao arábica, que tem uma qualidade melhor do ponto de vista sensorial. O menor preço tem levado as empresas a mesclar um percentual entre ambos num produto conhecido como blend. “Se você colocar 10 ou 20% de canéfora, a diferença não é muito perceptível”, afirma Pereira.

Quanto à produção, o pesquisador explica que “o clima e o solo ditam qual tipo de café é mais propício. O canéfora produz em clima mais quente e chuvoso, como Rondônia e algumas regiões do Espírito Santo, já o arábica rende em áreas de maior altitude, sendo Minas Gerais e São Paulo os maiores produtores”. Além disso, Pereira observa que o Brasil é o único país da América a cultivar ambos em larga escala. Segundo estimativas da Conab, a cafeicultura brasileira produzirá 32,4 milhões de sacas de café beneficiado do tipo arábica e 18 milhões do canéfora até o final da safra de 2022.

O pesquisador do IAC, Sérgio Pereira: “programa de melhoramento genético tem como destaque um café com cafeína zero”. Crédito: Fernanda Machado

Com quase 95% dos lançamentos do tipo arábica, o programa de melhoramento genético do IAC tem como destaques mais recentes o cultivar Arara, resistente à ferrugem, e um café sem cafeína que chegou ao Instituto na década de 50, mas apresenta baixa produtividade e por isso, ainda está em desenvolvimento. “Estamos trabalhando, é uma inovação gigante porque o processo de descafeinar é caro e tira um pouco do sabor. Então se chegarmos num café bem produtivo e com zero cafeína, será muito interessante”, conclui.

A cafeicultura tem no melhoramento genético, uma semente que promete novos frutos para a nossa sociedade. Principal motor da economia brasileira na época do Império, incentivou Dom Pedro II a criar o IAC, uma vez que “até então toda a pesquisa era feita na Europa, com clima, solo e cultura de lá”, pontua Pereira. Foi por meio da ciência que o Brasil construiu uma tradição cafeeira que, até hoje, o projeta como a maior potência mundial do setor.

Orientação: Profa. Cyntia Andretta

Edição: Henrick Borba


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